Opinião

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Serafim Soares Leite nasceu em S. João da Madeira, a 6 de abril de 1890. A sua existência de quase 80 anos foi passada na Europa e no Brasil.

A vocação de Serafim Leite

Serafim Soares Leite nasceu em S. João da Madeira, a 6 de abril de 1890. A sua existência de quase 80 anos foi passada na Europa e no Brasil. As deslocamentos constantes entre países do Velho Continente e as travessias do Atlântico obrigaram-no a uma penosa separação física dos seus familiares e da terra que o viu nascer. Esta circunstância não só fez aumentar o amor à família e a S. João da Madeira, como quase se tornou uma obsessão para ele. Basta observar os pseudónimos utilizados nos seus primeiros escritos – João Madeira e Mário Vítor, este em homenagem às irmãs Maria e Vitória –, as constantes referências a S. João da Madeira nas obras que escreveu, os artigos publicados n’O Regional, desde os primeiros tempos do jornal, o seu empenho no processo da Emancipação Concelhia, a criação do Hino e do Brasão da cidade, bem como a sua quota-parte na construção do Parque de Nossa Senhora dos Milagres, para percebermos que o compromisso assumido por Serafim Leite com a Companhia de Jesus nunca diminuiu a sua ligação com a família e o povo da sua terra natal. E, no entanto, o que sabem os sanjoanenses sobre este homem extraordinário? Que é o patrono de um agrupamento de escolas de S. João da Madeira e que o seu nome foi dado a uma das ruas da cidade. Pouco mais do que isso.
Os textos de carácter biográfico publicados sobre Serafim Leite, três ao todo, foram escritos por outros religiosos da Companhia de Jesus e descrevem a sua vida de forma linear e factual, enfatizando a sua formação intelectual e os trabalhos históricos que publicou. Porém, nenhuma dessas biografias, por desconhecimento dos respetivos autores, teve em conta o texto que saiu da sua pena, intitulado “A Minha Vocação”, uma resumida mas esclarecedora autobiografia publicada na Revista da Academia Brasileira de Letras, em 1940. É esse mesmo texto que a seguir se reproduz em português atual, ainda que, pela sua extensão, o tenhamos que fazer em dois números de O Regional, o presente e o da próxima semana.
A MINHA VOCAÇÃO
Nasci em S. João da Madeira, no dia 6 de abril de 1890, no lugar da Quintã, numa casa modesta, que se ampliou e desdobrou depois em duas maiores, junto à Escola, quase em frente à Misericórdia. O meu pai, José Francisco Leite, sombreireiro, fabricava chapéus de lã, indústria manual, que era então a única. Ainda me lembro da loja ou oficina onde trabalhava, e do arco e das cardas, com que ele ganhava o primeiro pão que comi. A minha mãe, Leonor Emília Soares, era assedadeira e vendia as estrigas de linho assedado às raras fiandeiras que ainda tinham a coragem de pegar na roca das nossas avós; a estopa, que se acumulava em nuvens brancas junto ao sedeiro, destinava-se sobretudo aos pirotécnicos dos arredores, que em S. João nunca os houve. Liga-me a este seu ofício uma reminiscência pessoal. A vara fina com que minha mãe sacudia as arestas da sua estopa, servia também às vezes para corrigir minhas perrices de criança. Coisas úteis que se vão esquecendo entre as pieguices modernas.
Das minhas três irmãs, uma tinha mais onze anos que eu e serviu-me como de segunda mãe. Ainda vive, solteira, e Deus a conserve para nossa alegria; as outras duas casaram e, muito à antiga portuguesa, deram-me um rancho de sobrinhos e sobrinhas que me chamam todos padrinho, ainda que de batismo só o sou da primeira e do último. Mas a mais velha, chamando-me padrinho, deu a lei aos demais: fiquei padrinho de todos.
Guardo também suave recordação das minhas duas avós (os avôs não os cheguei a conhecer) e da minha madrinha, irmã de meu pai, que morreu tísica, já casada, na flor da vida.
Esta era a minha família. Consagro-lhe a singela recordação destas linhas, para protestar contra a lenda de que os Jesuítas perdem o amor à família e porque dois membros dela, meus tios maternos, Serafim e Manuel Leite da Silva deveriam influir dalguma forma na minha vida, orientando-a para os dois pólos em que ela se repartiu definitivamente. O primeiro era Padre; o segundo, mais velho, foi cedo para o Brasil e ali se estabeleceu no Amazonas. O tio Padre encarreirou-me para a vida eclesiástica; ao tio “brasileiro” devo a ocasião de conhecer e viver na selva amazónica, tomando assim contacto directo com os Índios semi-selvagens das cabeceiras dalguns afluentes do Rio Negro, onde ele tinha os seus seringais e castanhais. Conhecimento este sumamente útil para os trabalhos históricos que mais tarde haveria de escrever sobre o Brasil.
Era eu menino, dois anos dizem-me, quando o meu pai, de que guardo vaga ideia, talvez mais de outiva que de vista, embarcou para o Pará em busca de fortuna, com que lhe acenavam uns parentes ricos. Pouco depois falecia de febre amarela. Quando catorze anos mais tarde passei no Pará, a minha primeira visita foi ao cemitério da Soledade, onde o autor dos meus dias repousa na vala comum, como que a unir o meu próprio ser, pela origem, à gleba americana.
A meninice tive-a como todos. Brincalhão, traquinas, inquieto, vivi com dificuldades, pobremente. Para ajudar a minha mãe, o meu tio Padre que era também meu padrinho, levou-me para Madaíl, pequena freguesia onde iniciou o seu munus de pastor de almas. Bom homem, no entanto a sua maneira distraída e desigual com que castigava as minhas faltas de garoto de oito anos, tornaram-me odiosa a permanência naquele presbitério frio e deserto, longe da proteção e afago materno. O pretexto principal para a estada com o meu Tio era aprender a ler. Ao voltar a casa, pus-me com empenho à escola do velho e bemquisto professor Frutuoso e aos 10 anos fiz exame de instrução primária ou de admissão ao Liceu como então se dizia. Não obstante o meu Tio ficar como de relações cortadas, lá apareceu no Liceu a recomendar o afilhado… Era verdadeiro amigo. Estreei por essa ocasião as minhas calças compridas, um fato claro aos quadradinhos, e umas botinas de cor. Que vaidade! Uma lufada de vento atirou-me o chapéu à Ria. Recolheu-mo um barqueiro. Poucas mais recordações me restam dessa ida a uma cidade. Apenas a impressão de que Aveiro era uma cidade grande… primeira lição do relativismo das coisas.
Estudos secundários iniciei-os no Colégio Internato dos Carvalhos. Tomei a peito os estudos, mas sobretudo, não sei porquê os temas de português. E causou-me funda impressão a primeira obra literária que pedi timidamente ao professor de literatura, o drama Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett. Assim passei alguns anos na vida descuidada de estudante até que coincidiu com a crise da adolescência um duplo facto que mudou repentinamente o rumo às minhas preocupações. O Tio do Brasil veio a Portugal e manifestou desejos de levar um sobrinho para o ajudar nos seus negócios. Esconderam-me um pouco esse desejo, mas enfim revelou-se e cá me ficou a bailar. E assim, quando aos 15 anos o primeiro olhar de mulher despertou em mim os sentimentos naturais àquela idade, senti a grave responsabilidade do sacerdócio. Receei por mim. E o convite do Tio do Brasil surgiu-me como uma solução imediata.
(Continua no próximo número)

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