(Continuação do número anterior)
Publicamos hoje a segunda parte de A MINHA VOCAÇÃO, texto autobiográfico de Serafim Leite, publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras, em 1940. O documento original, de que possuímos uma cópia, é composto por 14 folhas datilografadas e corrigidas manualmente pelo autor. Dada a extensão do texto, algumas passagens, que consideramos menos significativas para a compreensão da história de vida de Serafim Leite, foram suprimidas.
“Não se deu este abandono provisório dos estudos e da Pátria, sem o desgosto dos meus. Hoje, refletidamente, bendigo a Providência, que leva os homens por vias desiguais, mas sempre para os seus fins. Tenho a firme convicção de que se não fosse este passo nem eu teria escrito a minha pobre, mas principal obra, História da Companhia de Jesus no Brasil, nem a teria escrito com o conhecimento de causa com que a escrevi.
Assim pois, em 1906, fui juntar-me ao meu Tio. E estes sete anos no Brasil, passados nas margens e florestas virgens do Rio Negro, no Pará e em Montalegre, entrecortados por duas idas de repouso a Portugal, em 1909 e 1911, deixaram-me recordações indeléveis. Compelido aos dezasseis anos a ganhar o pão com o suor do meu rosto, numa autonomia absoluta, naquela natureza selvagem, poderia ter sucumbido como muitos outros ao ambiente cálido e sensual que me solicitava vorazmente. Atribuo à relativa cultura, que já levava, a resistência à absorção. Quase todos os rapazes do meu tempo, que compartilhavam comigo dos mesmos trabalhos e aspirações, por ali ficaram perdidos obscuramente nas dobras blandiciosas de algumas saias feiticeiras. Este feitiço não me atingiu. A minha insatisfação alimentava-se de livros. E os livros salvaram-me. Salvaram-me não tanto por me darem uma orientação à vida, que não deram, como por me ocuparem os ócios perigosos e manterem vivo o gosto pelo estudo.
Ideias assentes não as tinha então, nem em política nem em literatura. Segui a corrente. No meio destas leituras, a esmo, quanta inutilidade! Não era, contudo, só a literatura de ficção que me atraía. Cada mês (no Rio Negro havia correio só uma vez, quando o vapor de Manaus, mensal, o trazia...) cada mês recebia o grande jornal, que vinte e cinco anos mais tarde havia de acolher tão generosamente as minhas modestas produções históricas, o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, que o meu Tio assinava. E lembra-me também que li – tive essa coragem e decerto ocasião única para o fazer – li do princípio ao fim, os enormes volumes da História Universal de César Cantú. A organização do meu trabalho deixava-me tempo livre. Enquanto outros o desperdiçavam em conversações fúteis, eu lia.
Neste meio tempo ensaiei os primeiros passos na composição literária. Uns versos impossíveis, uns contos ingénuos, umas crónicas sem fundo, mas que se publicaram, e que, não valendo nada, serviam de pretexto para me lisonjearem os meus amigos, como se de facto valessem...
Começando a produção, nasceu a reflexão. Era necessário dar rumo à vida. Casar-me? Aquele primeiro sorriso de mulher, em Portugal, refloriu no Brasil noutro igualmente claro e honesto. Era preciso decidir-me. E um dia, inesperadamente, compro no Pará, um bilhete para Hamburgo. E eis-me na Holanda, em Bois-le-Duc e Kasteel Gemert, onde então se encontrava o meu Tio Padre a aprofundar os estudos de Filosofia. Cinco anos antes, por ocasião do regicídio, tinha-se ele feito Jesuíta. Imagine-se a surpresa que experimentou quando lhe anunciaram que estava ali o sobrinho. Em poucas palavras pu-lo ao corrente da minha vida.
Vendo as minhas disposições, aconselhou-me meu Tio a ir a Alsemberg, perto de Bruxelas, onde então se achava, desterrada, a casa de formação dos Jesuítas Portugueses. Fiz um retiro particular, seguindo os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, expostos por Maurício Meschler. Os estudos iam-me aterrando com a sua duração, mas deslumbrava-me com a sua profundeza. Repito: olhando as coisas a sério, com absoluta sinceridade, creio que não foram os Exercícios Espirituais que me moveram à vocação religiosa, a não ser indiretamente, isto é, como ocasião de morar numa casa da Companhia alguns dias, e assim conhecê-la melhor. Creio antes que devo olhar a minha vocação por duas faces diferentes: uma exterior e visível, amor aos estudos; outra invisível e mais profunda, alguma coisa semelhante àquilo que Pascal põe na boca de Deus: meu filho, tu não me buscarias, se eu não te tivesse encontrado...
Decidido a entrar para a Companhia, voltei a Portugal, para preparar a família e dispor as coisas. E, enfim, entrei no Noviciado na mesma casa de Alsemberg, daí a aguns meses. Quando os padres me deram o abraço de boas-vindas, disse-me um deles: Entra com a guerra? Bom sinal. A Companhia é uma milícia...
Não se tornam a esquecer frases como esta, de duplo sentido.
Nos estudos de Letras, encantaram-me as Humanidades. A familiaridade com os clássicos latinos e gregos, conhecidos diretamente, na sua própria língua, iam dar às minhas leituras inorgânicas uma ordenação literária.
Em 1919, comecei o curso de Filosofia no Colégio Máximo de Granada que durou três anos.
Com 33 anos de idade não era conveniente deter-me. Em setembro de 1923, no momento em que Primo de Rivera proclamava ditadura em Espanha, segui para a Bélgica, para me formar em Teologia no célebre Instituto Teológico de Enghien.
No fim do terceiro ano de Teologia sobreveio o grande dia do sacerdócio. Na Bélgica as ordenações costumam ser depois das férias grandes. Na Universidade de Comillas, Espanha, eram um mês antes. Para ganhar esse mês e vir dizer missa nova em Portugal, ordenei-me nesta Universidade.
Convocada a minha família para a Póvoa de Varzim, aí disse uma das primeiras missas, sentindo a ausência de minha mãe, a quem Deus tinha chamado a si alguns anos antes.
No dia 23 de junho de 1927, fiz o exame ad gradum, coroando assim, a minha carreira de estudos. Admiro-me hoje de como sem prejuízo dos meus estudos essenciais, me foi possível escrever tanto durante ela. Grande parte das poesias impressas nos meus dois volumes de versos, escrevi-as durante o tempo de estudante. Compus também alguns contos e inúmeros artigos de ocasião, para o quinzenário da minha terra “O Regional”. Entre outras coisas, lembrei duas obras necessárias e importantes para S. João da Madeira, a criação de um parque e a ereção, dentro dele, de um Santuário a Nossa Senhora dos Milagres. Em tão boa hora se lançou a ideia, que uma e outra coisa são hoje realidade esplêndida. Compus também o Hino Oficial de S. João da Madeira e ideei o seu escudo heráldico. Com outros Sanjoanenses concorri com modesta parte para a sua emancipação municipal, ajudando a redigir a pró-memória que lhe valeu essa regalia, em 11 de outubro de 1926. Tenho feito pelo engrandecimento da minha terra natal tudo o que era compatível com a minha situação religiosa. E com satisfação, porque um amor constante e profundo me prendeu sempre à minha gente e à minha terra.
Ora, esta atividade literária, a que sempre me inclinei, não passou despercebida aos superiores de quem dependeria a orientação prática da minha vida. E sucedeu que, ainda mesmo durante os estudos, já nas férias de 1926 em que vim a Portugal, me destinaram à redação do “Mensageiro”.
Em julho de 1926 recebi instruções para me dirigir a Lisboa, para onde tinha sido transferida um ano antes a Redação da Revista Brotéria. Estava fixado o meu “ofício” na Companhia. Seria “escritor”. E cá vou como posso, seguindo o conselho de Lacordaire: Crucifiez-vous à votre plume...
Tenho entremeado esta ocupação de escritor com outras, umas vezes com mais felicidade outras menos. O gosto pelos livros trouxe-me à Companhia de Jesus; a Companhia devolveu-me aos livros. E pelos livros, num ato de agradecimento, procuro servir a Verdade e glorificar a Deus.
Roma, 2 de fevereiro de 1939
SERAFIM LEITE