O Governo não caiu. Colapsou, podre por dentro. A crise política sucedeu às várias crises criadas pela maioria absoluta do PS: na habitação, no SNS, nos rendimentos das famílias. O Governo está morto, o secretário-geral deposto e está aberta a corrida à sucessão no PS.
Foi a apresentar-se como candidato a essa corrida que Pedro Nuno Santos decidiu evocar a história de São João da Madeira para dizer que a pujança industrial deste concelho, em particular no setor do calçado, se deveu a uma cultura de concertação social e de diálogo entre trabalhadores e empresários. Uma espécie de santa aliança que produziu nestes 8km2 um paraíso na terra.
Percebe-se a intenção de Pedro Nuno Santos. Com essa reinvenção da história quer dizer que tanto está do lado do patrão como do trabalhador. Reescreve os acontecimentos para se fazer equidistante e prometer, tanto ao PS como ao país, o centro político. Sem lados, sem escolhas.
É, no entanto, um enorme branqueamento da injustiça e desigualdade que sempre se viveu no setor do calçado. É a negação do papel histórico que os trabalhadores tiveram para o desenvolvimento do concelho de São João da Madeira, mesmo quando tinham pela frente um patronato conservador, muitas vezes reacionário.
Os trabalhadores do setor do calçado são dos mais mal pagos do país. A maior parte das categorias já foi absorvida pelo salário mínimo, o subsídio de alimentação é de uns miseráveis €2,5 e o patronato do setor insiste em manter a carreira congelada e tenta afastar o sindicato mais representativo da mesa das negociações. Práticas de encerramentos selvagens, pela calada da noite, com salários em dívida aos trabalhadores, perpetuam-se. Enquanto isso, o setor bate recordes de lucros e de exportações – mais de 2 mil milhões de euros em 2022! – e produz dos sapatos mais luxuosos e mais caros do mundo.
Não é uma concertação social. É um euromilhões para os patrões e uma vida de dificuldades para os trabalhadores. Com o salário estagnado, rendas a aumentar 25% em três anos e alimentos básicos a aumentar 40%, os trabalhadores do calçado, para além dos mais mal pagos do país, são também dos que continuam a empobrecer, ano após ano.
Dizer que o que fez evoluir São João da Madeira foi a tão elogiada concertação é negar a história e aceitar a exploração como norma. Coisa que as trabalhadoras e os trabalhadores do calçado nunca aceitaram.
Foram eles que em 1943 desafiaram a ditadura e, em greve, mesmo quando a GNR veio em auxílio do interesse dos patrões, exigiram aumentos salariais e o pagamento das chamadas “miudezas”. Foram elas e eles que lutaram pelas 40h semanais e tantas vezes o fizeram sob violência e agressão do patronato. Foi a sua luta que erradicou o trabalho informal e infantil que ainda há pouco tempo grassava no concelho.
Não foi a concertação. Foi a luta. Não foi a associação patronal. Foram os trabalhadores. Não é com o elogio da equidistância que as coisas avançam. É com o combate à exploração. Não é sentando-se no centro. É escolhendo um lado. O dos que mesmo trabalhando mal ganham para viver. Essa é a realidade do setor do calçado. Em vez de a apresentar como modelo é preciso transformá-la.