Conheci o Ricardo Batista no início da minha adolescência. Iniciava-se uma nova fase da nossa vida, em que às seguras amizades da infância acrescentavam-se novos conhecimentos
Escrevo com grande emoção, ainda numa fase confusa, entre o desprender do corpo e do desfilar de memórias.
Procuro para o presente texto um fio condutor cronológico, para não confundir o leitor e não transmitir o estado em que me encontro.
Conheci o Ricardo Batista no início da minha adolescência. Iniciava-se uma nova fase da nossa vida, em que às seguras amizades da infância acrescentavam-se novos conhecimentos, muitos desaguando em profundas camaradagens.
A memória mais antiga que lhe guardo é em torno de um tabuleiro de xadrez. Numa das primeiras edições do Campo de Férias Estamos Juntos, certamente. Recordo-lhe a noção estratégica de jogo, com uma condução segura das peças, tornando-se um adversário equiparável, em que as vitórias só surgiam, para um dos lados, por pequenas distrações cometidas.
Lembro o seu corpo franzino e o sorriso fácil nos lábios, o que muitas vezes incomodava quem mal o conhecia. E também recordo a sua capacidade de interrogar, prenúncio de uma retórica que o caraterizaria anos mais tarde.
Sucederam-se Campos de Férias, acampamentos na serra da Freita e a certa altura descobrimos uma mútua afinidade por certas e determinadas músicas, o que promoveu uma maior aproximação. Devo ter-lhe emprestado alguns vinis, gravado algumas cassetes e o contrário também sucedeu, como era normal naquela época. De certeza que lhe dei a conhecer algumas bandas, assim como por ele fiquei a conhecer os Violent Femmes, uma banda de culto, bem juvenil, norte-americana.
Nesses verões de tardes e noites intermináveis, a existência de concertos na cidade do Porto era um dos grandes momentos das férias. A presença de Peter Murphy no Rivoli, com o estrado posicionado por cima do fosso da orquestra a desabar a dois metros da nossa ânsia de chegar à linha da frente, foi um momento partilhado com estupefação e grande entusiasmo.
A música uniu-nos e os novos gostos afastaram-nos. Eu mantive-me pelos sons independentes, o Ricardo alinhou pelo som de origem brasileira, ou mesmo pelo jazz, onde ele se sentia confortável, até para dar asas à sua capacidade de executante de guitarra e como cantor. Eu sentia-me desconfortável nessa área, depois de uma frustrada e tardia iniciação ao estudo de baixo elétrico, permanecendo como ouvinte e divulgador, em grupo restrito, das novas correntes musicais.
Ainda por esses verões, voltou o gosto pelo xadrez. A criação da respetiva secção surgiu na Associação Estamos Juntos pelo interesse do nosso grupo de amigos pelo jogo. Foram serões encantadores em torno de tabuleiros. A análise dos jogos efetuados. O conhecer novas aberturas de jogo. Os fundamentos estratégicos. Os finais. Só que o entusiasmo dos que me eram próximos abrandou e aos poucos fui ficando sozinho.
Não perdemos o contacto. Assisti ao primeiro concerto do Coro de Câmara de São João da Madeira, onde prontificava, sem menosprezar os outros, o Ricardo.
Coincidimos, anos depois, em concerto no Porto de David Byrne, o nosso grande “herói” de outrora.
Já na idade adulta, com as responsabilidades intrínsecas à vida profissional, não deixamos de estar disponíveis para o associativismo. Eu continuava na AEJ, procurando dar um novo rumo para o clube, o Ricardo pretendia alojar numa associação o seu entusiasmo pela capoeira. Assim aconteceu.
Depois veio a fase de filhos pequenos e aí perdemos o contacto, tal era a preocupação na adaptação ao desafio familiar.
O acaso juntou-nos nos primórdios da blogosfera. Cada qual com o seu. Trocando links, interesses, comentários e mensagens de incentivo. Por detrás do ecrã tínhamos um contacto com todo o mundo. Depois as redes sociais tornaram-se obsessivas e desta vez, fui eu o primeiro a sair, não alinhando com os outros, mantendo-me na escrita para a imprensa.
Anos depois, ao proporcionar o estudo de piano aos meus filhos, voltei a sentir o gosto pelo ritmo, ao acompanhar a sua preparação para as aulas. Inscrevi-me em aulas de baixo elétrico e no mesmo edifício, a alguns quilómetros de sua casa, descobri que o Ricardo Batista era aluno do mesmo professor, em graus de estudo mais evoluídos, num combo de jazz. Acedi ao convite e assisti com a minha família a uma das suas atuações, o que despertou no meu filho algum interesse nesse tipo de música, que viria a culminar no seu ingresso no ensino superior como intérprete de piano, vertente jazz.
As últimas conversas versavam estes temas, o xadrez jogado na internet, os interesses dos filhos, os concertos a que assistíamos, o bom jazz que se toca em Portugal e claro, muita política, que apesar de estarmos no mesmo lado da barricada ideológica, houve sempre muita divergência. Tal como no futebol, em que o dérbi lisboeta era vivido em perfeita oposição. No entanto, convergíamos no apoio ao clube local e no último dérbi regional, fomos com o nosso amigo Pacheco ao Estádio Conde Dias Garcia.
No último 24 de dezembro, trocamos os votos e fiquei a saber da sua escrita de quadras, para oferecer aos seus sobrinhos, o que seria inédito. Expliquei os costumes caseiros e como uma parte da animação noturna consiste em cantoria, acompanhada ao piano, ficou curioso e pediu para ouvir. Passei a noite a enviar mensagens áudio ao Ricardo, que elogiava a escolha dos temas e a performance de voz da minha filha e os arranjos do rapaz.
Não voltamos a falar.
Ainda partilhou um vídeo da atuação do Coro de Câmara na Praça Luís Ribeiro, nas atividades de natal, com um toque pessoal bastante cómico.
As vidas por vezes são inacabadas, são fragmentadas.
Ficam projetos por acabar.
Ficam filhos por acompanhar.
Permanecem as memórias…
O aperto sentido no dia 13 de janeiro não o esquecerei.