Opinião

As estufas da ira

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Nas últimas semanas, o surto de Covid-19 entre trabalhadores imigrantes das explorações agrícolas alentejanas trouxe nova atenção sobre esta região, onde a produção intensiva - de olival e de frutos vermelhos - tem sido denunciada pelas populações, que assistem indignadas à destruição dos solos, ao corte de linhas de água e de caminhos municipais. No caso do olival, verifica-se o cerco das vilas, aldeias e escolas por culturas superintensivas, pulverizadas com pesticidas que envenenam os poços, as ribeiras e a própria atmosfera. No caso dos frutos vermelhos, o plástico das estufas cobre extensas áreas protegidas e disponibilidade de água da região.
As preocupações das comunidades rurais com a vida no seu território entram por um ouvido do governo e logo saem pelo outro. Igual destino têm as denúncias, feitas pela associação Solidariedade Imigrante ou, no parlamento, pelo Bloco de Esquerda, sobre flagrantes violações dos direitos humanos de milhares de trabalhadores trazidos a estas produções. Essas denúncias não são de hoje e repetem-se ao longo dos anos. O que mudou foi que o surto de Covid 19 tornou impossível ignorar por mais tempo as condições de vida, de exploração e de habitação. A doença mostrou estes trabalhadores como pessoas que sofrem e adoecem, não meros instrumentos agrícolas armazenados longe da vista e usados até já não servirem mais.

Jorge Costa contesta as condições de trabalho oferecidas nas explorações

Só em Odemira estão hoje cerca de nove mil migrantes legalizados. Mas nas campanhas sazonais, a partir de março, pico da produção de frutos vermelhos, juntam-se mais de 20 mil trabalhadores de várias nacionalidades. Os salários, abaixo dos mínimos, são em parte capturados pelos patrões como paga de miseráveis alojamentos e albergues. A violência e a chantagem mafiosa fazem parte do processo. Só em 2019, a polícia recebeu mais de 40 denúncias por tráfico de pessoas para a agricultura. A realidade está à vista: o trabalho forçado existe em Portugal e não se trata de uns poucos casos isolados. Este é o modelo de negócio de empresários sem escrúpulos, que se escondem atrás de agências de trabalho temporário para enriquecer com a super-exploração de imigrantes. É esta a mina da agricultura intensiva, cuja importância nas exportações vemos louvado, uma e outra vez, pelos poderes públicos. Como se não soubessem de que é feito esse “sucesso”.
Foi este modelo de negócio que o governo consagrou em 2019, quando instalou, para durar 10 anos, uma ilha de contentores para 400 pessoas em beliches, quatro em cada divisão, afastados das povoações mais próximas pelo menos um quilómetro. O governo chamou-lhes “estruturas complementares da atividade agrícola” porque, precisamente, a estes homens-alfaia não se reconhece direito à habitação, nem a acesso a transportes e a equipamentos de saúde, educativos, sociais. Portugal aceita-lhes a vida e o trabalho, recusa-lhes tudo o mais.
O governo tem muito trabalho pela frente em Odemira, em todo o Alentejo e mesmo noutras regiões com casos semelhantes. Está na hora de entrarem em campo a Segurança Social, a Autoridade para as Condições do Trabalho e as autoridades policiais suficientes para desmantelar as redes de tráfico de seres humanos que alimentam este negócio. Para que estas pessoas não voltem a cair no esquecimento antes disso, será preciso adequar leis e manter vigilância e luta. Mesmo depois disso, muito continuará por fazer. É que todo o modelo de desenvolvimento rural e produção agrícola no sul ficou exposto: quem não respeita solos, água, o território, não quererá respeitar quem nele vive e trabalha.

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