“Todas as mortes nos matam um pouco”. O verso solto do poema “In memoriam” de Ruy Belo, ajuda a compreender o estado espírito, geracional, perante o anúncio de falecimento de Rui Amorim.
A notícia quebrou a tranquilidade da manhã. Surgiu como uma dúvida, à espera de confirmação. Pouco depois, tudo se ratificava. Trazia vaticínio e paradeiro do conterrâneo.
Seguiu-se o silêncio.
Com um desfile de memórias.
Recupera-se o passado mais antigo. A simpatia e boa disposição que o Rui irradiava, sempre cordial no trato, quando com ele me cruzava. Eu dez anos mais novo, contente pela deferência e ainda distante de frequentar os mesmos espaços, como iria acontecer anos mais tarde.
Há uma recordação curiosa, que não posso deixar de escrever, numa tarde de fim de semana no Pé de Salsa, em que os seus dois filhos, muito pequenos, correram para me cumprimentar. Por não me conhecerem, sempre pensei ser engano dos petizes, confundindo-me com alguém, ou então, a cortesia surgiu devido ao meu desajustamento relativamente aos outros clientes do bar.
Há uma outra reminiscência, desse mesmo bar, igualmente curiosa. Uma noite, na companhia de dois dos seus irmãos, entre outros convivas, as colunas de som deixaram de debitar. Os cânticos vindos daquela mesa sobrepuseram-se à animação proporcionada. Sucederam-se canções de um repertório musical português e brasileiro, essencialmente datado e ousadamente cantado, por quem pretendia acompanhar os três irmãos.
Recordo o Rui, anos mais tarde, com a oferta noturna já envolvida totalmente por música eletrónica e no encerramento de uma discoteca em Ovar, entre o desligar da música e das luzes, a cantar sozinho e com os outros notívagos a escutar.
Neste capítulo, a sua aventura em abrir um bar, Opuscopus, em pleno Parque América, com o horário em contraciclo com os ritmos da noite, apesar do desfecho, teve a particularidade de recuperar um conceito antigo de convívio noturno. No qual, a conversa se sobrepunha à música.
É nesta fase que Rui Amorim publica artigos em O Regional. Entre junho de 1994 e setembro de 1995, puxando dos seus pergaminhos familiares, o fugaz cronista edita crítica ao quotidiano local, sem perspetiva partidária, apenas com a intenção de ironicamente manter uma intervenção cívica e comunitária.
Pelas vicissitudes da vida, perdi o contacto com o Rui. Até que mais tarde o encontrei em plena Viagem Medieval em Santa Maria da Feira, como artesão. Numa tenda, de cinzel numa mão e na outra um martelo, vestido a preceito, em tons escuros, com a mesma amabilidade de sempre, lá me explicou o seu ofício, esculpindo a pedra enquanto falava.
Não o voltei a ver.
Soube que estava a viver no Algarve, por um dos seus irmãos. Fiquei sempre com a ideia que um dia nos cruzaríamos por terras algarvias. Mesmo sabendo que essa costa corresponde a duzentos quilómetros de extensão, não perdi a esperança de um encontro casual, inesperado, tal como a da última vez.
Não serei a pessoa ideal para escrever um obituário completo. A diferença de idade e o perder do seu rastro há mais de uma dúzia de anos, não me permitem alongar mais.
Haverá quem esteja em melhores condições para escrever.
Interessou-me apenas acrescentar umas linhas à singela participação de falecimento de Rui Amorim. Dando relevo a parte da sua vida, que foi marcada por uma forte subjetividade.
Aos seus filhos e demais família, envio um forte abraço.