Opinião

A maioria ruidosa

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Enfiaram um cravo no tubo da G3.
Durante a noite, duas músicas soaram espaçadas na rádio.
As senhas para o golpe militar.
Os carros de combate seguiram em coluna para a capital.
Recordam-se histórias insólitas: jipe militar a parar na luz vermelha dos semáforos, chaimites a pedir indicações aos transeuntes madrugadores, para subir ao Chiado.
Na rádio, pela manhã, ouviu-se um apelo para a população ficar em casa.
Desobediência completa.
As ruas encheram-se.
O Largo do Carmo, foco de resistência aos militares revoltados, tinha mais populares que tropas.
Trocaram-se poucos tiros. Houve algumas, poucas mortes.
Cansados dos relatos da guerra colonial, dos seus feridos, dos seus milhares de mortos, alguém se lembrou de transformar a espingarda em jarra e o golpe militar passou a chamar-se a revolução dos cravos.
Surgiam planos novos para o país.
Acabava a censura, a polícia e a prisão política.
A liberdade de pensamento, de expressão, de associativismo, permitia o aparecimento de correntes políticas proibidas no passado.
Terminava a guerra. Iniciava-se um processo de descolonização.
Acrescentava-se a democracia e o desenvolvimento, como desígnios para Portugal.
Alguns dos líderes da madrugada de abril, percebendo melhor o que aconteceria nos meses seguintes, promoveram, a seu tempo, a desmilitarização da sociedade.
Mesmo com o incremento da escolaridade obrigatória, da criação do serviço nacional de saúde, do fim do condicionalismo industrial, os bairros de lata continuavam a proliferar às portas da capital. Alguns políticos entenderam que o desenvolvimento do país, limitado pelas suas fronteiras europeias, passaria pela aproximação à comunidade económica europeia (CEE).
Cinquenta anos depois, os símbolos da revolução de abril continuam presentes nas suas comemorações. As músicas são entoadas e sempre recordadas.
O cravo continua a ser o símbolo dessa Liberdade alcançada.
A democracia é respeitada.
Curioso povo.
Tolerante, pouco interventivo.
Singular na sua história. Presente no apoio ao seu primeiro rei. Séculos mais tarde, esteve na aclamação da Dinastia de Avis. E muitos anos depois, também na coroação da Dinastia de Bragança. Revoltou-se sozinho contra as tropas napoleónicas e mesmo contando com apoio estrangeiro, conservou a independência da sua soberania. Manteve reservas quando surgiram novas correntes políticas internacionalistas.
Este é o bálsamo para as tendências deste século. Um povo que percebeu a importância da democracia, do respeito mútuo pela liberdade de expressão e que não pretende retroceder. Sendo na sua maioria uma população condescendente, não terá pejo em fazer-se ouvir, calando o populismo, nova forma internacionalista de exercer política, desmascarando a sua demagogia e contradição permanente.
Meio século depois de se calarem as G3, com décadas a progredir no seu caminho democrático, Portugal não precisará de um novo gesto metafórico, para que a Liberdade esteja assegurada a todos. Mas se for necessário, a voz dessa maioria será ruidosa.

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