Ganham o dia a oferecer um lugar a quem dele necessita em troca de uma moeda. Entendidos por uns e mal tratados por outros, estes “moedinhas”, como dizem ser também conhecidos, pedem para comer, para alimentar vícios
Em S. João da Madeira, como noutras cidades do país, há várias pessoas a viverem como arrumadores de carros. Trabalham por zonas específicas e oferecem um lugar de estacionamento, a quem dele necessita, em troca de uma moeda. Se há quem os compreenda, existe quem os olhe de lado e com desconfiança.
´O Regional’ acompanhou o dia de dois dos mais de 20 arrumadores que há em S. João da Madeira, para conhecermos o quotidiano destas pessoas, e como nasce, afinal, um arrumador de carros.
Rui Correia, 33 anos. É arrumador de carros há mais de 10 anos e toxicodependente há 15. Passa horas junto ao Centro de Saúde. “Muitos já me conhecem, e já vêm ter comigo. Outros ainda nos olham de lado e pensam que, se não derem uma moeda, vamos riscar os carros todos”, frisa.
Chega cedo ao local. “Tem dias que, antes das oito da manhã, já cá estou. As segundas-feiras são dias bons. Vem muita gente ao Centro de Saúde e fazer análises”. Rui já teve trabalho, mas “a droga” não permitiu a sua continuidade. “Não é fácil deixar. Sou acompanhado. Queriam que fosse todos os dias para o CAT na Feira, mas não tenho possibilidades de ir para lá”, revela. Este homem tem família em S. João da Madeira. Vive atualmente com a mãe. “Eu sei que ela sofre com esta minha situação”, diz de olhar caído.
Se por parte dos condutores é respeitado, diz que o mesmo não sente por parte das autoridades. “Muitas vezes passam por aqui e pedem para não falarmos com as pessoas e chegam mesmo a ameaçar que nos levam para a esquadra. Não queremos esta vida. Ninguém escolheu isto. Só queremos uma oportunidade. Não andamos a roubar. Nós pedimos”. Rui, neste momento, quer apenas realizar o seu sonho. “Deixar a dependência da droga. Quero uma nova vida”, confessa.
“Não faço mal a ninguém”
João Paulo, 49 anos, natural de S. João da Madeira, vive na rua. Tem noites que dormita numa casa fria e abandonada, outros em casa de familiares, principalmente nos dias em que vai levantar o correio. Há menos de um ano que deixou de ser recluso. A prisão foi o seu “lar” durante um ano e quatro meses. Obrigado a pernoitar onde pudesse, transformou-se num “arrumador de carros”, junto ao centro de saúde da cidade. Cada moeda que lhe possam dar vai ajudando, pouco, “nesta vida desarrumada”, diz.
À medida que vai orientando os condutores dos veículos, vai contando que
recebe pouco mais de 100 euros do Rendimento de Inserção Social. “Mas, o que queria mesmo, era pagar uma renda, para ter o que mais falta me faz, um teto”. E continua. “A polícia não quer que estejamos na rua, como arrumadores de carros. Por vezes, dizem mesmo para sairmos de lá”. Contudo, com gratidão, diz: “Ninguém é obrigado a dar, mas toda a ajuda é bem-vinda. E agradecemos, mesmo aos que não podem dar-nos uma moeda”, enfatiza.
Como todos nós, João Paulo já foi criança, os pais eram de Cucujães, e também teve sonhos. Mas, a vida anda depressa, e os pais já faleceram. “Tenho um irmão em Gaia, uma irmã aqui mais perto, com quatro filhos, que não consegue ajudar-me...”. Vai todos os dias levantar a sua refeição à Santa Casa da Misericórdia. “São todos muito nossos amigos, não nos tratam mal, pelo contrário”, assume. João espera um dia poder ter uma vida diferente. “Não faço mal a ninguém. Só quero ser apoiado, arranjar um emprego, ter um teto”. Reconhece o apoio que recebe, bem como outros amigos seus do Trilho, da Santa Casa da Misericórdia Santa Casa da Misericórdia. “Não sei o que seria de nós sem eles para comer, tomar banho, para nos orientar”, termina.
Artigo disponível, em versão integral, na edição nº 3887 de O Regional,
publicada em 14 de abril de 2022