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“A covid-19 veio mostrar que temos muito que aprender”

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Foi num cenário com mais de dez mil livros, na biblioteca de casa, o andar mais baixo da moradia, que a conversa se deu. Espécie de refúgio de Flores Santos Leite, icónica figura de S. João da Madeira.

Jornal – 'O Regional’ - O seu nome faz parte da História de S. João da Madeira. Chegar aos 97 anos é uma bênção ou um ato de coragem?
Flores Santos Leite - É uma sorte, uma grande sorte. Porque o meu bilhete de identidade já devia ter caducado (risos). Digo que é uma sorte porque, na altura em que fui submetido a uma intervenção cirúrgica ao coração, quando eles me abriram e viram o estado em que eu estava, disseram que era impossível estar vivo (risos). Isto foi há dez anos.

Então porquê?
Tenho, atualmente, três bypasses, e a equipa de cirurgia ficou admirada, porque eu tinha uma obstrução incompatível com a vida. E, no entanto, eu fazia a minha vida normal. É curioso que grande parte dos médicos do serviço de Cardiologia do Hospital Santos Silva, em Gaia, onde fui operado, vinham mesmo à enfermaria e perguntavam-me, em jeito de brincadeira, o que é que eu tinha feito para estar vivo. E eu lá dizia que durante a minha vida pratiquei sempre muito desporto, tinha uma alimentação mais ou menos equilibrada, cultivava o humor, que era importantíssimo, de maneira que as coisas muito sérias ou dramáticas, eu dava-lhes a volta e encarava aquilo como se fosse uma anedota.

Quem o conhece sabe que o sorriso é uma das suas características…
É curioso que, atualmente, ainda tenho pessoas que passam por mim e me dizem que até na rua eu ando sempre a sorrir. E eu respondo, em jeito de brincadeira, que só os tolos é que se riem por tudo e por nada. Mas pratico um pouco da boa disposição, mesmo andando em dias menos bons. Sorrir provoca o movimento, o jogo da mímica tem uma ligação com o nosso estado de espírito que está ligado ao cérebro, de tal maneira que o cérebro aceita essa movimentação, essa mímica dos músculos faciais. O facto de fazer estes movimentos beneficia o cérebro.

Mas onde é que vai buscar energia para manter a sua rotina diária?
Herdei do meu pai, dos meus avós, que foram pessoas de muito trabalho e que conseguiram transmitir aos herdeiros esse dever sagrado, que era trabalhar para criar uma certa independência, libertar-nos dos grilhões que nos ligassem obrigatoriamente a outros e, portanto, fazer um estilo de vida próprio dos tempos e das décadas de 30, 40.

Deixemos o médico e o escritor e vamos falar do jovem estudante sanjoanense, jogador de futebol, basquetebol, andebol, adepto de ginástica olímpica, e que integrou a Associação Democrática de Estudantes de Medicina de Coimbra. Que Flores Santos Leite era este?
Era um jovem que pensava que para a frente é que é o caminho. Sempre fui assim. Não havia dificuldade nenhuma. Saltar um obstáculo, muitas vezes sem pensar em consequências. Mas saltava. E, por vezes, ia parar à enfermaria por dar saltos mortais por cima de bancos de pedra. Tudo isto na tropa, em Mafra. Depois proibiram-me de praticar certos e determinados exercícios. Só aqueles que eram do regulamento. Portanto, o desporto, para mim, introduziu uma forma de estar e uma resistência imparáveis. Tudo o que era desporto, praticava-o. Joguei ténis, marcha… Criei, nos anos de 1953/54, uma escola de Ginástica Olímpica em Coimbra que funcionava nos Bombeiros Voluntários. No desporto pratiquei tudo ou quase tudo ao longo da minha vida.

Criou, nessa altura, em S. João da Madeira, uma equipa de voleibol do BES, e chegou mesmo a treinar a equipa. O desporto foi sempre uma paixão?
Desde sempre uma paixão enorme. Francamente agora não me recordo se  criei ou se treinei o voleibol do Banco Espírito Santo. Eu suponho que, como era médico, eles pediram-me para criar. Fiz tanta coisa ao longo da minha vida, mas é certo que estive na base da criação. Sei que era eu, praticamente, quem treinava a equipa de voleibol. Não tinha altura, mas tive sempre uma capacidade de libertação fantástica. E jogava, também. Estamos a falar do período de 1951 ou 52. Ainda joguei, também, basquetebol na Sanjoanense. Tive primos que se destacaram em várias modalidades, e eu era miúdo e ia para o campo de futebol para os apoiar.

O seu pai tinha uma grande paixão pelas corridas de motos…
Tinha, é verdade. Ele foi corredor de motos, mas sempre amador. Nada de profissional porque, naquela altura, o dinheiro era pouco.

Voltando à tropa, onde dava os saltos mortais sobre os bancos. Esteve lá 18 meses, após concluir o curso de Medicina. Nesse período, ainda fez cursos e formações. Que memórias tem desse tempo?
Muitas…Muitas e boas. Naquela altura até cheguei a preparar-me para ir para o Ultramar. Fui em 1952 para a tropa, e depois fui para manobras, para preparação como tenente. Já estava, portanto, em pleno uso da minha atividade profissional como médico quando fui chamado. Já tinha consultório quase há dois anos em S. João da Madeira. Tive de abandonar tudo. Mas, logo que acabei a tropa, tive a ideia de ir para a Palestina. Alimentei durante muito tempo essa ideia (risos). A saga dos judeus encheu-me a cabeça. Aquela literatura que fiz do Êxodo, quando foi criado o Estado de Israel. Ele foi invadido por cinco países muçulmanos. E eu li, e a minha leitura transportava-me a sagas de outro mundo. Então, fui a Lisboa para saber e perceber que possibilidades é que tinha de ir para a Palestina. Porque tinha sido criado um Consulado, não uma Embaixada, um Consulado, e lá o consegui localizar. Identifiquei-me como médico, disse que queria e tinha muito gosto em ir para a Palestina e questionei o que me esperava por lá. O senhor respondeu-me que tinham a informação de dois médicos que foram para a Palestina. Um estava a vender fruta no Kibbutz. O outro, perderam-lhe o rasto.

Então decidiu não avançar com essa ideia…
Claro. Depois de ouvir isto pensei cá para mim que ainda não é desta que vou para lá. Cheguei a casa da minha mãe, e ela perguntou-me se não tinha ido para a Palestina, ela nem sabia onde ficava (risos) e lá lhe expliquei as razões. Depois vim a saber, em pormenor, que, durante o dia, exercia-se a profissão de médico. À noite, pegava-se numa espingarda e ia-se defender a fronteira, que era, normalmente, atacada por cinco países muçulmanos. Aquela saga dos judeus encheu-me a cabeça de ideias. E continuei sempre a seguir o trajeto deles. Fui sempre um grande defensor dos israelitas. Até à altura em que comecei a reconhecer que eles eram excessivamente violentos no tratamento que tiveram depois com os palestinianos. Ainda sou do tempo em que eles conviviam. Palestinianos e judeus eram visitas de casa uns aos outros. E casavam-se. Casavam-se os judeus com os palestinianos. E, de repente, chegámos a esta situação. Sabia que eles não se podem ver uns aos outros. A situação dessa época é que me marcou muito. Marcou-me muito.

Durante anos foi um dos médicos mais reconhecidos na cidade. Os seus doentes atravessam gerações. Foi um homem realizado profissionalmente?
Completamente. Não há nada que eu não tenha feito. Mesmo quando não tinha nada para fazer, improvisava sempre qualquer coisa. Nunca fui de parar. Tinha de estar sempre a fazer qualquer coisa. Há uns anos, veio uma senhora às minhas consultas que me disse que antes vinha ao colo da avó, e, hoje, já era ela a avó e trazia a sua neta. São muitas gerações que me passaram pelas mãos ao longo destes 73 anos de atividade. Já vi de tudo. Coisas que foram autênticos milagres, outras para a qual não tinha explicação.

Poderá ter acesso à versão integral deste artigo na edição impressa n.º 3968, de 1 de janeiro de 2024 ou no formato digital, subscrevendo a assinatura em https://oregional.pt/assinaturas/

 

 

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