“É de uma liberdade total”, descreve o colecionador António Saint Silvestre. “Eles nunca pensam nem que vão vender, nem que são artistas. Nem querem sequer ser conhecidos”. Esta espontaneidade, aliada a uma expressão crua e autêntica, confere à arte bruta um estatuto único no panorama artístico mundial.
Juntamente com Richard Treger, António Saint Silvestre encontrou na cidade uma casa para a sua coleção, trazida de armazéns parisienses para o coração industrial de Portugal. “A nossa chegada foi em 2014. Fomos convidados pelo Doutor Castro Almeida. A princípio, ele falou em S. João da Madeira. Nós não sabíamos onde era, pensávamos que era na Madeira”, relembra, com um sorriso. “ Ele foi a Paris para nos convencer de vir para cá”.
A arte bruta e a psiquiatria
A arte bruta tem uma história marcada pela marginalidade e pela perceção de que os seus criadores estavam fora dos padrões estabelecidos. “Em 1850, houve vários psiquiatras que se aperceberam de que os pacientes tinham uma liberdade total para desenvolver arte”, explicou Saint Silvestre. “Nos Estados Unidos, na França e na Suíça, houve escritos de psiquiatras que falavam disto”. Contudo, foi apenas em 1946 que o conceito tomou forma, graças ao artista Jean Dubuffet. “Ele tinha um amigo psiquiatra e começou a perceber-se que nos hospitais psiquiátricos havia coisas muito interessantes. Consequentemente, perguntava: ‘O que é que fazem com isto?’. ‘Ah, pomos no lixo!’”. Dubuffet começou então a resgatar as obras e o seu espólio inicial está agora no Musée de l’Art Brut, em Lausanne, onde conta mais de 15 mil peças.
O impacto da coleção no município
Desde que a coleção se instalou em S. João da Madeira, mais de 15 mil visitantes já passaram pelo espaço. “Desde que estamos aqui, já fomos a Paris, a Madrid, a Viena,... Porque agora percebem que temos uma coleção muito interessante”, disse António Saint Silvestre. Mas o futuro levanta interrogações. “Estamos aqui há 11 anos, mas agora temos que ver o que fazer com a coleção…” O desejo é claro: “Queremos que a coleção fique em Portugal. No sul da Europa, isto é único”.
A cidade encontra, assim, uma responsabilidade. “A única coisa que lamentamos é que os industriais de S. João da Madeira não apoiem tanto os acervos e as instituições artísticas”, sublinhou Saint Silvestre. “Este museu é uma veia. Deveriam valorizá-lo”.
Para além do apoio das instituições, os colecionadores gostariam que os públicos de S. João da Madeira e arredores se interessassem mais pelas coleções e pelo espaço que engloba a arte. Sendo que, mostraram-se predispostos para acolher iniciativas de sanjoanenses que promovam a aliança da arte bruta com outras atividades interdisciplinares de relevo e de interesse público.
Um espaço de conexão entre diferentes campos artísticos
É conhecido que o Centro de Arte Oliva tem-se tornado um centro de referência para a arte contemporânea e bruta, proporcionando uma convivência inusitada entre diferentes expressões artísticas. A partilha do espaço com a coleção de Norlinda & José Lima permite ao público uma experiência imersiva que coloca lado a lado a arte bruta e a arte contemporânea, uma mistura que é comum em museus como o Pompidou, em Paris. “Ter duas coleções diferentes é muito interessante”, comentou António Saint Silvestre.
Mas a dinâmica do museu vai para além das exposições permanentes. “Temos exposições todos os anos, duas por ano. E temos projetos exteriores, mas como ainda não estão concretizados, falaremos depois”. A projeção internacional do espaço tem sido reconhecida, com catálogos premiados e exposições que viajam pelo mundo. “Quando fizemos a exposição em Paris, o catálogo que fizeram ganhou o primeiro prémio de design aqui em Portugal”, acrescentou o colecionador.
A presença da arte bruta em S. João da Madeira é um convite a olhar para a arte de forma diferente, a reconhecer a sua expressão mais pura e visceral. Mas estará a cidade pronta para abraçar verdadeiramente esta herança? “S. João da Madeira tem a sorte de ter três museus. Este, o do chapéu e o dos sapatos. É um núcleo muito interessante que as pessoas deveriam valorizar mais e não compreendo porque não o fazem”, lamentou António Saint Silvestre.
O destino da coleção e da arte bruta em S. João da Madeira está em aberto. Mas uma coisa é certa: a pequena cidade já entrou no mapa da arte singular e o mundo já se encontra de olhos postos nela.