1. No momento em que escrevo estas linhas, há nevoeiro cerrado. O governo continua em plenas funções, mas demissionário. A investigação que o derrubou surge mais periclitante a cada hora - erros do Ministério Público, recusa pelo juiz de instrução das medidas de coação propostas, dilúvio de violações do segredo de justiça - e a Procuradora-Geral da República ainda não apareceu para detalhar perante o povo as suspeitas que levantou contra o primeiro-ministro, como se a Justiça não devesse satisfações à Democracia.
Insegura sobre o chão que pisa, a direita prefere virar-se para… o governador do Banco de Portugal! A novidade é que Centeno é do PS. Dois ministros de António Costa competem pela sucessão, ambos evitando, enquanto candidatos, qualquer vestígio de crítica às opções tomadas. Nesta névoa, o colapso das urgências hospitalares, a falta de professores ou a crise da habitação parecem esfumar-se. E no entanto…
2. Seja qual for a consistência do processo judicial e o seu desenlace, o que vai surgindo da investigação judicial ilustra o regime de promiscuidade e privilégio que o Bloco de Esquerda tem denunciado ao longo dos anos. Há um Portugal que vive nos braços de facilitadores bem relacionados e outro Portugal que só conhece dificuldades. No primeiro, qualquer lei ou portaria pode sofrer um jeitinho em nome de investimentos; no segundo, há muito aperto e poucos “apoios”, muitos estudos e avaliações e poucas decisões. Como salientou Mariana Mortágua, a esquerda não é isto. Há uma esquerda de confiança que sempre se bateu contra a promiscuidade entre a política e os negócios.
Ao longo dos últimos anos, o Bloco fiscalizou e denunciou a atuação destes intervenientes em diversas ocasiões: denunciámos os grandes projetos do lítio ou do hidrogénio, impingidos como “projetos de interesse nacional” e consumados por figuras com mau currículo na proteção do mesmo. Em 2016, criticámos a contratação pelo governo do consultor Lacerda Machado; em 2018, pedimos a demissão do presidente da APA por complacência com interesses privados; em 2019, promovemos um inquérito parlamentar aos favores à EDP e vale recordar que, quando Manuel Pinho era ministro, Vítor Escária era assessor económico de Sócrates e Lacerda Machado estava nos órgãos sociais da EDP. Em 2021, expusemos o ministro Matos Fernandes na sua proteção à EDP na venda das barragens. Nunca os deixámos em paz.
3. Em maio passado, escrevi aqui n’O Regional que “este governo faz girar a porta entre política e negócios, alimenta o facilitismo, bloqueia a fiscalização do governo pelo parlamento, festeja estatísticas que contrastam com a realidade da vida, chama os serviços secretos porque sim. É o deslumbramento do poder absoluto, a arrogância e a negligência, bem visíveis na ação do primeiro-ministro perante tudo isto. Resultado: corrosão da democracia, fermento para a extrema-direita”. Confesso que, mesmo cético, não antevia tão desgraçado final meio ano depois.
No meio do nevoeiro sulfuroso destes dias, cabe uma palavra de esperança. Há uma esquerda de confiança, que sempre foi e será uma barreira a governos de direita. Essa esquerda provará que há alternativa e responderá pelo que verdadeiramente importa: os salários e as pensões que deixaram de pagar o básico, o tormento da habitação, a falta de médicos e professores, as políticas de falsa transição ambiental. Só com respostas verdadeiras se pode travar o passo à direita extrema.
*dirigente do Bloco de Esquerda