– Onde fica a ponte ferroviária da linha do Douro?
A dúvida surgiu e apoquentou-me durante uns dias.
O meu conhecimento geográfico, sobre o rio Douro, permitia-me identificar a linha de caminho de ferro até ao Pinhão, na sua margem norte. Por ter visitado sucessivas vezes aquelas margens, conseguia lembrar-me do traçado ferroviário, serpenteando a estrada desde Mesão Frio até ao Peso da Régua e por ter almoçado no terraço da estação desta localidade, coincidindo com a chegada de uma locomotiva histórica, não me restavam dúvidas sobre o trajeto naquela margem. Continuando para nascente, forçado a atravessar o automóvel para a margem sul, apanhando o troço mais esplendoroso da estrada nacional 222, sempre próximo do rio, num enquadramento paisagístico fantástico, fundamentando o epíteto de “estrada mais bonita do mundo”, observa-se a linha férrea na margem norte e calhando o comboio passar naquele troço, o efeito de espelho sobre leito do rio, transmite uma imagem memorável, que várias lentes de câmaras fotográficas captam com mestria. Ao chegar a Pinhão, novamente na margem norte, a visualização dos afamados azulejos da estação ferroviária, uma marca daquela povoação, confirmava o itinerário da linha.
Estava em Barca D’ Alva a observar a ponte ferroviária sobre o rio Águeda, que traça a fronteira naquelas paragens entre Portugal e Espanha, quando a questão me inquietou. Conhecia bem Pocinho, situado igualmente na margem sul do rio Douro, para perceber que entre Pinhão e aquela freguesia de Vila Nova de Foz Côa, haveria de existir uma passagem sobre o rio, que eu nunca tinha visualizado nas minhas incursões durienses. Tinha passado umas horas em Freixo de Numão, visitando o seu castelo, a meio do caminho entre as terras das duas margens atrás citadas e pressentia que a ponte seria ali por perto.

Recorri ao mapa que o telemóvel que faculta e segui o tracejado representativo da linha férrea e encontrei a passagem entre margens: ponte da Ferradosa. Ao procurar as imagens partilhadas pelos vários utilizadores, encontrei várias e desapoquentei, ficando a considerar sobre uma visita futura ao local.
Durou umas frações de segundo a quietude, uma das várias imagens partilhadas era uma vista sobre o rio Douro que, apesar de ser a cores, eu, em pequeno, havia passado vários momentos ao serão a olhar para uma fotografia idêntica, ainda que a preto e branco, em casa do vizinho dos meus pais, Doutor Renato Figueiredo.
– Essa paisagem já não a vês – assegurou-me a sua sobrinha, Maria Helena, quando ousei perguntar no dia do funeral do morador da Rua da Liberdade em São João da Madeira, onde ficava aquele miradouro sobre o rio Douro. A leitura de Miguel Torga aguçara a curiosidade sobre os vários locais para a observação do curso fluvial e sempre que visitava as suas margens, procurava um desses locais privilegiados.
– Agora está lá a barragem da Valeira – rematou.
Eu fiquei com a ideia que a subida das águas, devido à barreira, havia inundado aquelas margens e por isso, a paisagem ficara irreconhecível.
A fotografia encontrada focava o leito do rio, serpenteando as suas apertadas encostas. A grande diferença, reconheci ao percorrer as imagens com que o motor de busca da internet me presenteou, era concretamente a construção, após o meandro, que interrompia o fluxo da água. As diferenças mais pequenas, do lado selvagem do rio Douro, patente nas suas margens, não me consegui recordar.
Tendo a barragem sido inaugurada em 1976, questionei-me sobre o conservadorismo paisagista de Renato Figueiredo. Ou provavelmente, aquela recordação poderia ser uma homenagem ao esforço humano em tornar navegável o efluente para os barcos rabelos, sem recurso a represas, sendo precisamente o último obstáculo o Cachão da Valeira, que só um século antes seria atingido, através do nivelamento das águas.
Finalmente, após alguns anos de hesitações, rumei a São João da Pesqueira, concelho onde a referida ponte fica situada, seguindo o itinerário atrás descrito, apenas não cortando para Pinhão, subindo pela estrada nacional 222, para Ervedosa do Douro e posteriormente para o município desejado. Já no planalto, percorri algumas ruas da vila e fui surpreendido com a placa toponímica alusiva a “Dr. Joaquim Augusto Roseira Figueiredo”, irmão do meu ex-vizinho, falecido em 1999. A homenagem fez-me avivar várias memórias da minha infância, em especial, como era inconcebível para mim o encontro destes irmãos, em festas familiares, ser distante da terra de origem.
Sem tiques neorrealistas, demorei-me pela localidade, interessado nas iguarias gastronómicas da região, antes de rumar às margens do Douro. Descendo à cota do rio, por entre vinhedo e oliveiras, atingi a estação ferroviária da Ferradosa, bem distante da ponte e, portanto, do traçado do caminho de ferro. Mais tarde, percebi o meu equívoco: com a subida das águas provocada pela construção da barragem da Valeira, a antiga ponte ficou submersa e por isso, a nova ficou distante da referida estação, sem utilidade para o transporte ferroviário, mas com bom aproveitamento turístico.
A instabilidade climatérica acentuava-se. As nuvens cinzento-escuras eram em maior número no céu. Ouvia-se o som do trovejar, muito depois do disparo dos relâmpagos. Momento para subir a São Salvador do Mundo e apreciar os seus miradouros sobre o rio. Para montante, ainda que abrigado por guarda-chuva, pude conferir a beleza do enquadramento da Ferradosa.
A precipitação aumentava. No alto, a visibilidade diminuiu. Os clarões avistavam-se a nascente, a sul e mais tarde a norte. O santuário tornava-se um local inóspito e o sentimento de insegurança apoderou-se e não houve vontade de subir mais, nem para ver o troço a jusante, nem sequer a Valeira.
Cumpriu-se a profecia da Maria Helena, continuei sem ver aquela paisagem.
Na viagem para Carrazeda de Ansiães, entre curvas para a direita ou para a esquerda, fomos vendo a sucessão de trovões e o pressentimento que a tempestade ia ser declarada, anunciando estragos nas culturas.
Dois dias depois, as notícias confirmavam a suspeita.