Primeiro, instalou-se o cansaço: entre pequenos casos e verdadeiros escândalos, o pinga-pinga de demissões tornou-se rotina. Depois, o espanto: o inquérito à TAP destapou os privilégios oferecidos por Passos Coelho aos privados e os vícios da gestão sob controlo público. Seguiu-se a vergonha: uma série de ministros enrolados numa trapalhada de mentiras, com destaque para João Galamba, que já admite ter organizado a reunião secreta do PS com a presidente da TAP. Por fim, uma certa sensação de abandono: no seu frenesim, presidente e primeiro-ministro não conseguem melhor que uma série de jogadas de pressão e supremacia. A situação torna-se perigosa: a maioria das pessoas está a passar dificuldades e o poder parece nem dar-se conta disso.
A situação é perigosa porque a mentira tornou-se um recurso normal. A maior de todas (até à data) tem quase meio ano e pouco se deu por ela: para impedir a atualização legal das pensões em pagamento, a ministra da Segurança Social entregou ao parlamento números martelados, pondo em causa a sustentabilidade futura da proteção. Passadas três semanas, o relatório do Orçamento do Estado mostrava que as contas da ministra escondiam 2000 milhões de euros. O embuste pretendia amedrontar a população sobre o seu futuro, de modo a facilitar a imposição de um corte agora. Em comparação com esta, a mentira de Galamba (sobre a reunião secreta) seria uma brincadeira. Mas não o é, porque é mais uma entre muitas. E a mentira como método, a sua banalidade, corrói a democracia. Ao amnistiar toda a mentira, o primeiro-ministro agrava esta corrosão e faz-se o maior aliado da extrema-direita.
A atual situação é também fruto da negligência. A palavra “trapalhada”, sempre em voga, traduz mal a noção de impunidade. Este governo faz girar a porta entre política e negócios, alimenta o nepotismo e o facilitismo, bloqueia a fiscalização do governo pelo parlamento, festeja estatísticas que contrastam com a realidade da vida, chama os serviços secretos. É o deslumbramento do poder absoluto, a arrogância e a negligência, bem visíveis na ação do primeiro-ministro perante tudo isto. Resultado: corrosão da democracia, fermento para a extrema-direita.
O perigo vem também do predomínio da política de palácio. Esta maioria absoluta é filha do palácio. Foi nele concebida por Costa e Marcelo, em 2021, entre o bloqueio de negociações à esquerda e a opção pela dissolução do parlamento com pretexto no voto orçamental. Tudo em nome da estabilidade - que agora se vê: governo e presidente tropeçam um no outro, em jogos de pressão, alheios a um povo que empobrece. Pode-se gastar horas e horas de televisão e rios de saliva com o brilhantismo de cada guinada tática, mas tudo isso se vai tornando repugnante. À porta da política do palácio, não ficam só os jornalistas, de microfone na mão. Fica o país inteiro e as suas dificuldades, ouvindo os ecos da intriga.
Abrem-se assim as portas ao vandalismo - o dos charlatões de extrema-direita, cuspindo no seu palco, e o de engraçadinhos em casaca liberal, ambos empenhados em amesquinhar o que é de todos. Ora, quem abre a porta aos vândalos não pode anunciar-se como guardião da democracia. Abrir a porta aos vândalos é o que faz o PS, ao não tratar da inflação, da habitação, das escolas, dos hospitais, de tudo o que devia ser o seu mandato. A maioria absoluta enfraquece a democracia.
Dirigente do Bloco de Esquerda