Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Uma cidade majestosa e fervilhante como era Londres, cheia de vida, de sonhos e prazeres, foi um breve, mas penoso pesadelo para José Manta, o cucujanense que viria a tornar-se, no outro lado do Atlântico, num bem-sucedido caçador de baleias. As cidades, incluindo as mais belas, também eram coisas sórdidas, cheias de gente agachada, desordenadas e miseráveis. Os seis anos da Baía, primeiro, Londres, logo de seguida, tornaram-se numa esperança triste e desiludida. As onze libras da penhora do relógio de bolso tinham sido mal empregadas, mas José Manta não era capaz de adormecer profundamente. Nem se lembrou do mal que podia vir do mar. Os poucos meses passados em Londres, sem dinheiro e sem conseguir aprender a falar inglês, tornaram-se insanos. Não podia continuar por ali, descontrolado, a dormir em caves e águas-furtadas, a gastar o que não podia. Decidiu embarcar para Barcelona. Por pouco tempo: da Catalunha voltou a atravessar o Atlântico, desta vez para chegar a Boston. Ainda não tinha feito vinte anos quando ali foi parar no meio de fardos, caixotes e baús, com a camisa mal engomada, o bafo das temperaturas e febres altas e a companhia sinistra de uma ou outra ratazana de porão.
Acompanhemos José até Boston. Barcelona fora um apeadeiro sem história, não era possível voltar para trás. No dia 22 de abril de 1865, conformado ao enjoo, o nosso jovem mal deu conta de que tinha aportado em Boston, Massachusetts, o berço da revolução americana. Os postais turísticos gostam de dizer que Boston ressuscitou das águas. Também se diz que a sua história começou mais a sério com os emigrantes puritanos que desembarcaram na baía de Massachusetts, em 1630, fundando uma pequena povoação a que deram o nome de Trimontaine. Um século passado, por causa de um extraordinário imposto, o do chá, os antigos colonos de Boston revoltaram-se. O protesto desses colonos ficou conhecido como Boston Tea Party. Era o começo, em 1776, de uma revolução que só terminaria em 1783. Quando a revolução acabou, Boston começou a crescer rapidamente, com muitos emigrantes a chegar da Europa e a aumentar, com sentido de identidade, a população da cidade. Mas Boston ainda era muito pequena, cercada de água por todos os lados, menos por um: o único acesso por terra chamava-se Boston Neck, o pescoço de Boston, uma estreita faixa de terra para os lados do sul. E a área de terra que sobrava era reduzida devido ao Beacon Hill, um morro que ainda tornava mais diminuta as hipóteses da cidade crescer. Os moradores de Boston começaram então a retirar terra do morro de Beacon Hill e a depositar essa terra em Charles River. Boston ficou então uma terra muito maior, fazendo o mar recuar. Em 1865, quando José Manta ali chegou já tinha acabado a guerra civil, iniciada em 1861. Boston era, por aqueles anos desesperados, um centro vital do movimento abolicionista. Ao contrário de Portugal, que continuava a colecionar tristes histórias de barcos negreiros. Consta que um conterrâneo do nosso caçador de baleias achava natural o tráfico de escravos, a sua sombra atroz, e bem-vindos os frutos vivos dos grandes lucros desse comércio de almas.
José Manta estava cada vez mais pragmático. Esqueceu rapidamente o ano passado na Baía, as suas lojas insignificantes; e a obediência servil, ao lado de três escravos negros. Em Boston, começou por trabalhar no carvão. Por pouco tempo. O horizonte alargou-se quando José voltou a correr para o mar. Foi contratado para fazer parte da tripulação do Welma, para voltar a atravessar o Atlântico, passar Gibraltar e chegar à Turquia. Era o ano de 1867, no início de janeiro, quando o Welma partiu de Nova Iorque rumo a Esmirna. Dez homens iam a bordo, para carregar, na volta, os porões do navio com figos e passas. José tinha pouco mais de vinte anos. Enquanto andou no mar não ficou a par de notícias excecionais que chegavam do seu país. A justiça ia-se tornando mais branda. Naquele ano efervescente de 1867, depois de o visconde de Seabra ter publicado um revolucionário código Civil, um criminoso civil deixou de poder ser condenado à morte em Portugal. Por outro lado, a normatividade de se poder abandonar, com vergonha voluntária, uma criança à porta de edifícios frios, solidamente construídos, foi considerado um gesto impróprio. As rodas dos enjeitados, nas portas de mosteiros e conventos, desapareceram, dando lugar a hospícios. Neles podiam ser albergados os expostos e todas as crianças abandonadas, com pais conhecidos, ou os indigentes. Longe da pátria, foi a bordo do Welma que José Manta fez uma viagem trágica. A 17 de janeiro, por volta das quatro da manhã, ventos fortes e ondas alterosas empurraram o Welma para a costa, perto de Plymouth, no Devonshire. Situada no sudoeste da Inglaterra, junto à Cornualha, Plymouth significa a Boca do Plym, o rio que forma, com o Tamar, o enorme estuário em cujas margens se ergue a cidade, um dos maiores portos marítimos da Inglaterra.
Quatro décadas antes, no ano de 1828, com o assalto ao trono dos miguelistas, uma peça de Almeida Garrett tinha subido à cena na cidade. Por três ou quatro vezes, Catão foi ali representada por um grupo de refugiados portugueses. Na altura, amontoados em barracões, Plymouth estava cheia de exilados liberais. Eram mais de dois mil, vindos da Corunha e de Ferrol. O mais famoso de todos os fugitivos, Almeida Garrett, permaneceu ali pouco tempo, mudando-se rapidamente, com a sua mulher, Luisa Midosi, para Londres, onde vão residir confortavelmente no número 13 de Oxendon St. Haymarket. Muitos outros permaneceram naqueles barracões, meses a fio, em condições deploráveis e humilhantes. Um dos fugitivos, Joaquim da Silva Maia descreveu com cores negras o desespero do exílio inglês: inteiramente desabrigados, sem janelas de vidraça, sem qualidade alguma de bancos, cadeiras ou camas; deitaram-lhe avulso uma pouca de palha, que renovavam de 15 em 15 dias, e que se tornava um excelente esterco, porque sendo o local dos armazéns pantanoso e cheio de lama, os emigrados que não tinham aonde limpar os sapatos, com eles enlameados andavam por cima das palhas… A representação da peça de Garrett foi um momento apaziguador para muita gente famosa, que terá estado, sem certeza absoluta, nos bancos da frente, como o conde de Vila Flor, José Estevão, os irmãos Passos e tantos outros.
Muitos anos depois, também José Manta sentiu a respiração ofegante, cortada junto a Plymouth. O Welma, impotente, afundou-se; os náufragos permaneceram horas e horas agarrados aos seus destroços. Dois marinheiros morrerão. Um salva-vidas enviado de Plymouth recolherá os restantes oito tripulantes, entre eles José Manta. O português, depois de ajudar este ou aquele companheiro, terá sido o último a abandonar o barco destruído. Passará dois meses num hospital de Boston, com a saúde em baixo. A sua vida foi sofrendo ajustamentos. José casaria, três anos mais tarde, em 1870, mas sem largar a vida no mar. Foram muitas as viagens que fez entre Boston e Provincetown Mass, onde passou a viver. Em 1874, comprou um barco para a caça à baleia. Arriscando a sorte, o Waldron Holmes do cucujanense passou a caçar baleias ininterruptamente, no bom e no mau tempo, durante todos os meses do ano. Manta começava a enriquecer e a dispor de dinheiro para comprar mais barcos. Primeiro foi o Fred, depois o Elmer, em 1900, um baleeiro que passou a usar, com orgulho incontido, o nome do português. A América não o desapontara, José sabia bem que valia o que valia.

 

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