Opinião

Por alguma coisa se tem de amar a terra...

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Nas histórias de viagens dos nossos conterrâneos foram alguns que, por cima das águas, se expuseram a perigos visíveis e pouco recomendáveis. Repentinamente, quando menos se esperava, o mar atirava os barcos contra as rochas. Gritaria, algazarra, confusão. Felizmente, para alguns deles, o êxito futuro, a força da perseverança, justificava o preço que tinham pago por ele. Entre os iluminados, entre desgraças e a glória, lembremos o caso exemplar de José Manta, nascido no Couto, no lugar do Picoto, no dia 18 de janeiro de 1846. Este fora um ano terrível, de seca e cheio de pragas na batata. Três meses decorridos desde o nascimento de José, impostos e cemitérios ajudaram a aumentar as efusões de ódio das mulheres do Minho contra o chefe do governo, Costa Cabral. A frequência dos tumultos, que juntaria uma coalização de inimigos, da extrema esquerda à extrema direita, forçaria Cabral à demissão. Quanto a José, foram poucos os que repararam então na criança nascida num casal de feirantes do couto. Quando se deslocavam para norte, as feiras dos pais de José não atravessavam o Douro. Com ar de caso, cansados de discussão, a vender chapéus de palha pelas feiras da região, Francisco Silva e Maria Rosa não tinham muito tempo para cuidar do filho. Uma família pobre, pouco vaidosa, áspera ao toque. José mal teve tempo de ir à escola.
Muitos anos depois, no dia 25 de abril de 1926, o menino pobre foi homenageado postumamente na sua terra natal. José mal andou na escola; recebeu pequenas, reveladoras doses de letras, não sabendo nós se os pais ficaram razoavelmente satisfeitos com o seu reduzido e medíocre percurso escolar. Mas, fora da escola, num arco virtuoso, José viria a fazer pequenos milagres durante a sua existência. A sabedoria tornou-se mais simples e prática. Em 1926, colocaram um busto seu na sacristia da igreja. Um dia, com fortuna, José tinha deixado de andar triste, descalço e preguiçoso, passara a vestir camisas de noite e a usar relógios de ouro. Tinha ficado tão rico do outro lado do mar que se habituara a dar avultadas esmolas aos pobres e desvalidos da sua primeira aldeia. Tornara-se no conde Garcia do couto, contemplando o passado, as suas sombras, como se fossem uma claridade crescente. Podemos imaginar José em Provincetown, numa pontinha de Cape Cod, no Massachusetts, a apanhar baleias em vez de bacalhaus. Eis José junto aos seus barcos baleeiros, o Waldron Holmes, o Fred, o Elmer, a recordar vagamente os pais feirantes, a vender chapéus ridículos de terra em terra, em feiras sem cor e animação, a sua infância pobre, o desenlace improvável da sua existência longa... José morreria longe do couto, mas habituara-se a mandar dinheiro para manter a igreja e a arrumar o cemitério que tinha levado à desgraça Costa Cabral, apanhado nas divinas surpresas das mulheres do Minho. O carro fúnebre oferecido por José carregaria, anos e anos, muitos mortos até ao cemitério de Cucujães. Foi esse o caso de António Joaquim, no verão de 1923, quando o mais conhecido químico português da época não resistiu a uma crise cardíaca. Um hospital para a terra, sonho de Luís Ribeiro e da condessa Libânia, seria também uma justificação para o piedoso desapego ao dinheiro de José Manta.
Recordar José em abril de 1926, tantos anos desde a sua morte na costa este da América, em Provincetown, pode ser também contar algumas das suas andanças pelo mundo. Estas, aquelas, as muitas viagens afortunadas que foi fazendo. E podem aparecer, em novas tentativas, estas ou aquelas outras viagens, mais desastrosas, sempre a cruzar os mares. José abandonara cedo a escola, para se fazer à vida. Parecia um bicho, meia leca na altura, morto por chegar à Baía, a bordo do Brigue. Tinha dez anos e nove meses e dava o melhor de si, trapalhão e malandro. Os entendidos conheciam bem a maldição dos porões. Apanhar um barco para a Baía não era grande coisa para os pobres e miseráveis, como José. Podia ser mesmo uma coisa de horror, cheia de nódoas, à maneira dos antigos escravos, na escuridão dos porões. Alguém que conheceu José, no seu estilo severo, descreveu uma travessia dolorosa, desde o Porto à Baía, cercado de ratos mais ou menos pequenos e de ratazanas menos caprichosas. O rapazinho falador, de atalaia, sentiu forte a dor, a sina adversa. Os dias pareceram anos, as noites séculos, com José a bordo do Brigue. A aportar na grande cidade que seduziu um dia Darwin, em 1832, quando ali desembarcou a bordo do Bragle. Baía, a cidade maravilhosa onde nasceu a condessa de Penha Longa e onde os Pinto Leite foram sensatos a enriquecer a olhos vistos. Onde José, dramatizando a miséria, não ficou muito tempo, um ano quase inteiro a trabalhar sem brio no armazém de José do Passo, ao lado de três escravos negros.
A Baía não foi grande coisa para o nosso caçador de baleias. Não foi tão generosa para José Manta como foi o Rio para Albino e Garcia. Apesar de tudo, a primeira capital do Brasil ajudou-o a perseguir uma ideia fixa. José fez algumas economias e, ao fim de seis anos na Baía, regressou ao Couto de Cucujães. Não se deixou adular. Tinha promessas solenes para tentar cumprir. No dia 14 de março de 1864, depois de penhorar um relógio de bolso por onze libras, partiu para Londres. Era o ano da fundação do Diário de Notícias e do primeiro recenseamento a sério da população do reino. Chegamos rigorosamente aos 3 829 618 habitantes. Eça de Queirós andava então por Coimbra a viver agitações noturnas com Antero, a conspirar na Sociedade do Raio, a preparar golpes como o da Rolinada. O futuro rei D. Carlos tinha nascido no ano anterior e o seu nascimento tinha sido o pretexto para não ser dado o habitual perdão do ato aos estudantes da academia. Rolim de Moura e o chefe do seu governo, o duque de Loulé, em abril e maio, foram alvo de uma carnavalesca chacota estudantil. Como o tinha sido, dois anos antes, o reitor Basílio, um czar de borla e capelo, como via Eça este adepto da disciplina académica rigorosa, intransigente, e das punições severas aos que a desrespeitavam. Mas não vamos seguir Antero e Eça a abandonarem Coimbra em protesto, rumo ao Porto, no ruidoso comboio da liberdade. O caminho de José Manta foi mais prosaico até chegar a Londres com as poucas libras do relógio penhorado. Os floreados da retórica estudantil não serviam de grande coisa para a aventura londrina do nosso conterrâneo, pouco letrado em cantorias.
Chegou José a Londres sem ter muito tempo para avaliar o que o esperava. Teve pouco tempo para limpar o suor. No início da década de 60, um seu conterrâneo vivia feliz em Inglaterra. Era Sebastião Pinto Leite, que casara cinco anos antes, em Cucujães, no dia 18 de dezembro de 1855, com a sobrinha baiana, Libânia. O tio tinha quarenta anos, a sobrinha quinze. O casal vivia em Londres em 1861, no número 71 da Avenue Road, em Hampstead. Numa casa partilhada com outros familiares de Libânia, a mãe viúva, Carlota, o irmão Júlio e alguns sobrinhos. Uma casa grande, a de Sebastião e Libânia, com governanta, cozinheira, ajudante de cozinheira, criada de quartos, escudeiro e lacaio. Meios fartos, pois, o da futura condessa de Penha Longa que, em 1860, por respeito aos defuntos, continuava a desconhecer a quanto chegava o volume da sua herança.
Aos vinte anos, Libânia fez o seu primeiro testamento, no ano em que o pai morreu. Não casara por amor, aos quinze anos. Imaginamo-la de vestuário preto a acender as luzes de um salão enorme no número 71 da Avenue Road. Libânia era uma mulher educada, sem desvarios, que, por escritura antenupcial, recebera do pai um dote de vinte mil soberanos. Feito o câmbio, noventa contos de réis. Com as aplicações, ignorava ainda a quanto chegava realmente a sua fortuna. Em 1860, começava a imaginar onde aplicar generosamente alguns desses haveres. Em 1864, mudando de protagonista, encontramos José Manta numa rua de Londres. O caixeiro da Baía continuava com pouca sorte. Não se tinha ainda afundado, mas as libras do relógio eram uma sangria. Não podia brincar a seu bel-prazer. José estava sem dinheiro, não conhecia ninguém, não sabia falar inglês. Sendo o problema seu, acreditava que não iria ser penalizado por isso.

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