Importa, mais uma vez, e as vezes que forem necessárias, relembrar que nunca duas democracias liberais se guerrearam
Em 1996, Thomas Friedman defendeu a famosa tese dos arcos dourados: nunca dois países com MacDonald’s entraram em Guerra um com o outro. A tese tem vindo a ser desmentida sucessivamente: desde a intervenção da NATO na Sérvia, ao recorrente conflito entre a Índia e o Paquistão, passando pelas invasões russas na Geórgia e na Ucrânia.
Mas a tese de Friedman, de natureza sobretudo pitoresca, enquadra-se numa teoria mais vasta das relações internacionais, a da paz democrática, segunda a qual as democracias liberais hesitam e resistem mais à guerra. É uma teoria herdeira da teoria da paz perpétua de Kant, onde ele avançou que, num mundo de repúblicas constitucionais, não haveria guerra porque a maioria dos eleitores nunca o aprovaria, salvo em legítima defesa.
Essa ideia materializou-se naquilo que chamamos hoje de democracias liberais. Sociedades marcadas pela tolerância da diferença e das minorias, pela compreensão de que nem sempre estaremos todos de acordo com tudo, pelo respeito da dignidade humana e pelo reconhecimento de direitos iguais. Tudo isto sob a arquitetura de um Estado de Direito democrático, onde as leis resultam de um processo consensual de deliberação coletiva, assente em constituições dotadas de pesos e contrapesos que controlem o poder do Estado – e quem detém esse poder. Um controlo destinado a respeitar a liberdade e autonomia dos indivíduos. E aceitando a ciência, e o método científico, como resposta consensual (embora nunca definitiva) aos problemas da vida.
Importa, mais uma vez, e as vezes que forem necessárias, relembrar que nunca duas democracias liberais se guerrearam. O liberalismo democrático tem provas dadas na prevenção de guerras inevitáveis. E continua a ser a explicação mais sólida para a paz entre velhas inimizades, marcadas pela guerra, como entre a Alemanha e a França, a França e o Reino Unido, o Japão e a Coreia do Sul.
Foi precisamente a superação das diferenças intrínsecas, e supérfluas, de cada comunidade (cultivadas ao longo da história – ou naquilo que se ensinou como história ao longo de gerações) que alimentou a ideia de globalização. Ideia essa, não apenas assente numa mera interconectividade do comércio e das finanças, mas sobretudo crente no avanço de um certo cosmopolitismo moral (plasmado em normas internacionais), que acabaria por relativizar tribalismos e identidades nacionais.
Esse movimento de globalização, chamado em tom depreciativo de globalismo pelo guru do Sr. Putin (Dugin), tinha, e continua a ter, um arsenal poderoso. Seja no plano económico e financeiro, com as maiores economias mundiais e instituições como o FMI ou o Banco Mundial. Seja no plano normativo, com a ação persistente do sistema das Nações Unidas ou da União Europeia. Ou até no plano cultural e científico, com a mundialização da informação, do saber e do entretenimento, com base numa língua franca (o inglês).
É um rolo compressor sobre a diversidade, que criou exclusões, mas assente em ideias tidas como universais. Um rolo compressor que nos ofereceu o período mais espetacular de realização da humanidade, em todos os domínios conhecidos. Um período de unipolaridade, num só sentido, liderado pelo (erradamente) chamado “Ocidente” (mas que também inclui países como a Costa Rica, Chile, Cabo Verde, Singapura, Coreia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia). Um período que sucedeu ao bipolarismo, ou à dualidade simplista entre capitalismo e comunismo, do pós-II Guerra Mundial.
Até que aconteceu o dia 24 de fevereiro de 2022. O dia da explosão da reação. Uma reação a fermentar há algum tempo, com erupções mais óbvias no Brexit, na eleição de Trump ou Modi, na ascensão de Le Pen, Salvini e Ventura, e nas manifestações dos coletes amarelos. Nesse dia, goste-se ou não, o mundo entrou numa fase de multipolaridade, de pluralidade. Um mundo que sempre existiu – mas que nunca quisemos ver.