Um retrato de duas famílias oriundas da Síria, que chegaram a Portugal com objetivo de refazerem as suas vidas, através de um programa de reinstalação de refugiado.
A família Qarabeli, vindos da Túrquia, integraram um programa do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a família Kahwaji, através do programa do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), vindos do Egito. A primeira família ainda está ao abrigo deste programa, enquanto que a segunda já o finalizou. Estas famílias ficam ao abrigo da Cruz Vermelha de São João da Madeira durante 18 meses. Depois disso, tornam-se independentes desta organização. Desde a chegada a Portugal até hoje, percebemos como foi o processo de integração e adaptação de braço dado com a Cruz Vermelha.
Família Qarabeli
A primeira família já nos esperava na rua 5 de outubro em S. João da Madeira. À entrada de um prédio alto localizado no centro da cidade, Joana Correia, diretora do Centro Humanitário da Cruz Vermelha nesta cidade e Catarina Ribeiro, assistente social, foram quem me guiou até ao primeiro andar, onde vive esta família. Amal Mahmoud, a matriarca da família, de 39 anos, disse “Podem entrar, estávamos à vossa espera”. À entrada estava o calçado de cada elemento da família Qarabeli, colocado em fila junto à parede. O marido de Amal, Ossama Qarabeli, de 37 anos, fez um sinal cuidadoso com o braço esquerdo, para que também pudéssemos colocar os nossos sapatos junto dos deles. De seguida, guiou-nos até à sala onde os 4 filhos já nos aguardavam. Apesar de algumas dificuldades que ainda sentem no país que os acolheu, Ossama refere que “os primeiros dias em Portugal não foram fáceis, mas agora sentimo-nos muito mais em casa”. Amal completa as palavras do marido para destacar “o apoio incansável da Cruz Vermelha”, que os têm acompanhado desde o momento em que chegaram a Portugal, em dezembro de 2020. Tal como referiu Joana Correia acerca do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido junto destas famílias, “a partir do momento em que aterram em Portugal fazemos o trabalho de integração a todos os níveis. Somos como uns pais ou tutores desde aquilo que é mais básico até ao mais complexo”. Como é o caso da entrada na escola de Bashir, Ahmed, Yezen e Abdullah, de 10, 9, 6 e 5 anos, respetivamente. Todos eles com um ligeiro aceno da cabeça concordam com o irmão mais velho Bashir de que, “apesar das barreiras linguísticas” e da “dificuldade na integração”, “a escola é uma das coisas que mais gosto em Portugal”. Bashir tentou reproduziu estas palavras em português, algo que vai fazendo ao longo desta conversa. Ele que, juntamente com o seu irmão Ahmad, vai também traduzindo o que os pais vão dizendo. Quando isso não é possível, recorrem ao tradutor do telemóvel através da voz. Joana Correia não hesitou em comentar que “Eles não querem apenas dizer coisas, fazem questão que nós percebamos aquilo que estão a dizer”. O que mostra a necessidade de serem compreendidos e de ganhar o seu espaço neste novo país que os acolhe. Como aponta Catarina Ribeiro, “é necessário olhar os refugiados como uma mais valia e não como alguém que nos vai roubar o emprego”.
Para além da escola, Bashir refere que “a casa é aquilo que mais gosto em Portugal”. Este lar, onde vivem os seis elementos da família Qarabeli, é o “local perfeito para relançar a nossa vida em Portugal”, como disse Osama. Ele que juntamente com a sua mulher Amal, dá um valor diferente a esta nova casa, como explicou, “Os nossos filhos ainda eram muito pequenos, não se lembram de nada. Mas nós lembramo-nos de tudo. Do medo que sentíamos de os perder.” Amal recorda que quando saíram da Síria de avião estavam a haver confrontos, “lembro-me como se fosse hoje, os meus filhos estavam assustados”. Caso continuassem por muito mais tempo no seu país de origem poderiam ter um desfecho trágico, como as cerca de 560 mil pessoas que morreram desde o início da guerra, em 2011, segundo o observatório Sírio para os direitos humanos (SOHR). A situação na Síria continua muito difícil e é por isso que, a família Qarabeli não duvida da opção que tomaram em se terem refugiado primeiro na Turquia e agora em Portugal. “Aqui sentimo-nos seguros, este país passou a ser a nossa casa e é nele que queremos viver. Pelo menos para já”, porque o sentimento de um dia voltarem ao seu país de origem, continua a ser uma opção, “está bem guardado dentro dos nossos corações”.
A família de Ossama e Amal, continua ao abrigo do programa de reinstalação de refugiados em Portugal, numa parceria entre o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). “Durante 18 meses esta família vai ser acompanhada pela delegação da Cruz Vermelha de São João da Madeira” como referiu Catarina Ribeiro. A Assistente Social acrescenta ainda que, “integrar de forma plena em todas as dimensões que um ser humano exige, em 18 meses é insuficiente”. Mas nem isso a impede de exercer o seu trabalho com o maior empenho e eficácia, “respondemos sempre da melhor forma possível, aos problemas e desafios que nos são colocados”.
Família Kahwaji
A distância entre as casas da familia Qarabeli e da família Kahwaji era pouca. O portão já se encontrava aberto, mas aguardamos mais um pouco até que alguém nos fosse receber. Oubay, de 14 anos, um dos filhos do casal Rana Alsamman e Nour Kahwaji, foi o primeiro a surgir à porta, e com um sorriso no rosto disse “Podem entrar, o portão está aberto”. Passado o portão descemos uma rampa que dá acesso à porta principal onde, para além de Obay, já estavam a sua mãe Rana, de 39 anos e a sua irmã Aya, de 21 anos, usando cada uma um hijab branco. Passamos pela cozinha, até chegar à sala de onde Obay chamou o seu irmão gémeo, “Qussai, podes descer!”. Ao que Qussai, com um ritmo apressado, desce as escadas e junta-se à família. Neste compartimento da casa deparamo-nos com alguns objetos religiosos, “Não há outro Deus, para além de Allah, Muhammad é o mensageiro de Allah”, disse Aya explicando um dos objetos que se encontrava pendurado na parede da sala. Rana acrescenta que, “trouxemos algumas coisas connosco, para que possamos sentir o nosso país mais perto de nós”. Para além destes objetos que trouxeram, como é o caso da “carpete que utilizamos para rezar”, também “compramos na internet café e condimentos da Síria”. Ainda assim, Aya refere que alguns detalhes são difíceis de colmatar, como por exemplo, “o som da chamada para rezar” ou por não haverem “mesquitas perto da nossa casa”. Apesar disso, a família Kahwaji tem outras estratégias e locais para rezar, “colocamos o som da chamada para rezar no telemóvel” e fazem-no em “casa ou no trabalho”, como disse Rana.
Depois de uma viagem de cerca de cinco horas do Egito até ao aeroporto Humberto Delgado em Lisboa e mais três horas de viagem até S. João da Madeira, esta família composta por 13 elementos chegou no dia 28 de novembro de 2019. Para trás ficaram alguns familiares, mas também algumas boas recordações, principalmente no primeiro país onde estiverem depois de saírem da Síria. Rana lembra as saudades da “família e das amigas que fiz no Egito”, Aya confessa que “passava muito tempo a estudar”, já que esteve durante “um ano na universidade”. Obay e Qussai, ainda nostálgicos, relembram os tempos na “escola e com os amigos”. A parte mais difícil, foi mesmo “quando deixamos alguns dos nossos familiares para trás. Não sabemos quando os vamos voltar a ver”, confessa Aya com um ar tristonho. O seu irmão Obay, que juntamente com Qussai vai traduzindo as palavras da mãe, disse que para se sentirem mais próximos desses familiares, “tentamos sempre partilhar momentos com eles através do telefone”. Apesar dos que lá ficaram, alguns conseguiram vir para Portugal mais tarde, “foi dos momentos mais felizes da minha vida quando soube que a minha tia e mais tarde, os meus tios e primos vinham para Portugal”, afirmou Aya com um sorriso tão contagiante que fez sorrir também os irmãos. Que de imediato traduziram para árabe as palavras ditas pela irmã à mãe. Após Rana se ter comovido com as palavras ditas por Aya, Joana Correia afirma que por ser uma família tão numerosa “ajudou muito porque o sentimento de comunidade e coesão é ainda maior”. Com um enorme sentimento de satisfação e dever cumprido pela forma como esta família está integrada, Joana reconhece que “a família de Rana e Nour é um caso de integração perfeita. O que nos deixa muito felizes”.
A cidade de S. João da Madeira é agora a casa da família Kahwaji. Comentam entre eles que, o que os faz aproximar ainda mais do nosso país é o clima e as pessoas, “a minha mãe disse que o tempo em Portugal é muito parecido com o da Síria e as pessoas aqui também são muito simpáticas”, disse Obay traduzindo as palavras da mãe. Apesar disso, as dificuldades são notórias desde a chegada. Qussai, com um ar entristecido, destaca as dificuldades que ele e o irmão têm sentido na escola, “a línguas e as disciplinas são muito diferentes das nossas, para nós ainda é difícil perceber algumas coisas”. Joana Correia, por forma a motivar Qussai diz-lhe, “já falas muito bem, estás a perceber e a responder a tudo o que te perguntamos em português”. Ao que Qussai assegura que “quando conversamos com pessoas portuguesas é diferente, onde sentimos mais dificuldades é ao ler os livros da escola. Porque as palavras são mais difíceis”. Joana revela que no caso de Aya, “ela esteve na universidade, como estudante Erasmus, mas como foi muito no início não correu bem. Não existia cadeiras paralelas em Inglês”. Após Obay contextualizar a mãe sobre aquilo que foi dito, Rana, comenta que essa foi a sua “maior tristeza” desde que chegou a Portugal, “a minha filha deixou de estudar na universidade, por causa da língua”. Aya completando a tradução que fez das palavras da mãe, disse que “é muito difícil estudar na universidade porque é tudo em português”. Neste momento, Aya está a trabalhar para poder ajudar a família e aprender melhor a língua portuguesa, com a esperança que no futuro possa “regressar à universidade como sempre sonhei”.
Apesar da vida mais calma em Portugal, não se esquecem do país onde nasceram, e para onde um dia “gostávamos de regressar, quando fosse seguro”, referiu Aya. Rana com a voz tremida e com um olhar triste e pesado, recorda o medo que sentiam após a guerra ter iniciado, “é muito difícil viver lá porque ninguém se sente seguro quando sai à rua. E mesmo quando estamos em casa não nos sentimos totalmente seguros”. Agora o caminho faz-se em terras sanjoanenses, ao que a família se sente muito grata pela ajuda da Cruz Vermelha. Com um gesto carinhoso na direção de Joana Correia e Catarina Ferreira, Aya destaca em tom de agradecimento que, “quando chegamos foram as primeiras pessoas que nos receberam. Tudo o que precisávamos elas ajudavam-nos, tudo o que não sabíamos podíamos perguntar. Foi muito importante ter o apoio da Cruz Vermelha nesta nova fase das nossas vidas”.
Delegação da Cruz Vermelha que acolhe mais refugiados em Portugal e o Contexto Português
Numa das ruas centrais da cidade, num edifício branco com as letras vermelhas em destaque, está localizado o Centro Humanitário da Cruz Vermelha de S. João da Madeira. Joana Correia e Catarina Ribeiro, falam-nos com grande orgulho do trabalho alcançado até agora no acolhimento a refugiados. Foi numa das salas, de paredes brancas manchadas pelo sol e cadeiras individuais de estofo azul escuro, que Joana recorda, “algumas aulas de Português foram aqui dadas pelos voluntários aos refugiados”. A sala estava decorada com papéis e cartões onde estavam escritos números, palavras e frases, “que serviram para as aulas dadas aos refugiados”, como referiu Catarina, ao mesmo tempo que apontava para a parede. E acrescenta, esta é uma forma de eles se “sentirem mais ligados ao nosso país” e “mais familiarizados com a língua no dia a dia".
Já num dos gabinetes com um amontoado de papéis em cima da mesa e capas organizadas por temáticas em prateleiras, Joana relembra o iniciou o projeto de acolhimento, em 2015, onde acolheram “dois jovens provenientes da Eriteia”, situado na África Oriental. E foi nesse mesmo ano, que “recebemos a primeira família oriunda da Síria”. Apesar da maioria dos refugiados que são acolhidos terem a nacionalidade Síria e os primeiros serem eriteus, também receberam refugiados do Sudão e Paquistão. Até hoje, foram “acolhidos 48 refugiados” pela Cruz Vermelha de São João da Madeira, sendo a estrutura local que mais acolhe pessoas nesta situação. Para Catarina, este facto “dá-nos uma maior responsabilidade”, mas também sabe que “se as coisas correm mal somos nós os responsáveis”. Ainda assim, conclui que “temos um apoio forte aqui na cidade, mesmo de outas entidades. Portanto é algo que tentamos fazer de uma forma positiva e despreocupada”.
Enquanto mostra algumas fotografias de momentos vividos junto dos refugiados, Joana realça a importância dos apoios que são dados ao longo dos primeiros meses de contacto entre estas pessoas e a Cruz Vermelha. Estes apoios vão ao encontro das necessidades diárias de cada um, “desde buscar ao aeroporto, a integrá-los na casa onde vão ficar, inscrever os miúdos na escola, entrevistas de emprego. Até resolver problemas burocráticos, da Segurança Social ou da Câmara Municipal, acompanhamento a consultas médicas e retirada dos dados biométricos do SEF”. Este trabalho é feito “como uma tutoria, fazemos aquilo que gostaríamos que fizessem connosco se estivéssemos nesta situação”. Assim, é desta forma que, a diretora desta estrutura local pretende “personalizar” e “tornar mais íntimo” este trabalho. Acreditando que, tendo “estas pessoas um histórico de vida com tragédia suficiente”. Se isso for feito, “podemos amenizar as dificuldades num primeiro momento, para que, o sentimento de gratidão e pertença seja maior”.
Enquanto fechava o Centro Humanitário, e nos dirigíamos para a porta que dá acesso à rua, Joana Correia fala do trabalho que tem sido desenvolvido em Portugal e na União Europeia no âmbito do acolhimento de refugiados. Lamenta a ameaça sentida por alguns países europeus em relação a este tema, lançando uma pergunta, “os fluxos migratórios a nível europeu, são vistos como uma grande ameaça. Se tivermos seguros dos mecanismos de segurança que implementamos a nível político e estratégico, porque é que estamos tão preocupados com a vinda destas pessoas?” Acerca disto, Joana quer “uma europa mais aberta, mas não só aberta para os europeus.” Destacando o facto de que estas pessoas “são uma mais valia”, como alguém “que pode contribuir de forma civilizacional para a nossa economia”. Por esse motivo, é necessário “deixar de os ver como uma ameaça”.
Em Portugal já foram acolhidas 2807 pessoas, como foi anunciado pelo governo no Dia Mundial do Refugiado, a 20 de junho. Em 2019, ao abrigo do programa do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), Portugal acolheu 21 pessoas de nacionalidade Síria que se encontravam no Egito. A Cruz Vermelha de S. João da Madeira, recebeu 13 desses cidadãos. Ao abrigo do Programa Voluntário de Reinstalação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) juntamente com a Comissão Europeia, Portugal já acolheu 620 refugiados e o Centro Humanitário de S. João da Madeira recebeu 10 desses cidadãos.