Opinião

Política Quântica

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Abstencionite
Em 1943, Jerry Siegel, o criador de super-pessoas, como o Super-homem e a Super-mulher, sucumbiu na sua idealização de perfeição, robustez e invencibilidade, e inventou a kryptonite. Um material verde e cristalino originário de um mundo extraterrestre e que emitia uma radiação capaz de enfraquecer, e até destruir, os mais voadores dos deuses criados pela humanidade.
Vem isto a propósito das declarações do nosso Presidente da República, no dia das eleições autárquicas, sobre a abstenção. O magistrado que mais alto voa na nossa nação considerou “estranho [os eleitores] não aproveitarem um momento que têm, de quatro em quatro anos, para irem votar”, e acrescentou que tal lhe faz “impressão” e que não consegue “compreender”. Sem querer fazer um desenho, recorro à banda desenhada, e com o devido respeito: a abstenção está para a democracia e para o seu representante supremo, como a kryptonite está para as forças do bem e para o Super-homem.
Importa começar por explicar que a abstenção, pelo menos até 2018, não terá sido tão alta quanto os registos oficiais indicam. Por exemplo, e segundo o Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral, a taxa de participação efetiva nas legislativas de 2015 foi de 61,8%, cinco pontos acima dos 55,8% da taxa oficial. Entretanto, a Lei 47/2018, promulgada a 2 de Agosto de 2018 pelo mesmo Presidente da República, introduziu importantes alterações que permitem aferir melhor as taxas reais de participação eleitoral. Tornando, contudo, ainda mais complexa a análise da evolução da abstenção desde 1975.
No entanto, e apesar desses desafios metodológicos, são já vários os estudos de cientistas políticos portugueses que nos permitem chegar às seguintes conclusões: (1) as taxas de abstenção real foram sempre inferiores ao registo oficial; (2) apesar desse facto, todas as diferentes formas de cálculo convergem em detetar um declínio linear da participação ao longo todas as eleições desde 1975; (3) os níveis de participação eleitoral em Portugal desceram mais acentuadamente do que no conjunto das democracias, não sendo portanto um mero reflexo de tendências globais.
Para qualquer democrata militante, estas conclusões são graves. E levantam dois problemas. Em primeiro lugar, a persistência de números da abstenção errôneos, e aparentemente inflacionados, são facilmente instrumentalizáveis por forças radicais e populistas. E fá-lo-ão com o objetivo de fragilizar os atuais canais de legitimidade democrática, abrindo portas a soluções mais autoritárias. Em segundo lugar, o declínio sem fim à vista da nossa participação democrática é música para os ouvidos dos nossos adversários filosóficos. Esses adversários, bem para lá da impenetrável Białowieża, ou pelos destinos de Jorge Álvares, usarão esse facto para nos enfraquecer, para nos diminuir, para nos banalizar e para ameaçar o nosso modo de vida.
Neste contexto doméstico e internacional, impõe-se a convocação de um Conselho de Estado com o intuito de formar um novo consenso social e político sobre o combate à abstenção. Um consenso que permita à Assembleia da República e ao Governo corrigir, por todas as formas tecnologicamente possíveis, as persistentes discrepâncias entre “abstenção técnica” e “abstenção real”. E que faça avançar uma reforma das nossas leis eleitorais, tendo em conta a complexidade das razões que levam ao progressivo afastamento dos cidadãos daquele momento raro em que são chamados a fazer escolhas livres e democráticas.
Tal é essencial para que continuemos a manter a kryptonite e os Lex Luthor do mundo à porta da nossa casa democrática.
Haia, 6 de outubro de 2021

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