O confinamento de março passado despoletou trabalhos artísticos, fosse por necessidade de passar o tempo ou gerar abstração dos problemas da pandemia.
Foi o caso das médicas, Ana Cristina Lopes e Susana Rios, que se aventuraram na pintura.
Os trabalhos surgiram, naturalmente, uma vez que ambas já tinham aproximação às artes ou concretamente à pintura. Os seguidores, nas redes sociais, entusiasmaram-se e as pinturas começaram a ser oferecidas, contribuindo para que o hobbie de pintar fizesse ainda mais sentido para estas profissionais.
Ana Cristina Lopes é psiquiatra no Hospital de S. João da Madeira e o confinamento deu-lhe tempo e vontade para se dedicar à pintura, um interesse que se juntou aos já manifestados por poesia e fotografia.
A psiquiatra, natural de Seia e a viver no Porto, cresceu próxima das artes, uma vez que os pais são da área de educação visual e tecnológica. Chegou a fazer um curso de pintura, mas direcionou-se muito para a escrita, nomeadamente poesia, tendo vencido alguns concursos, não considerando “nada muito sério”, pois sublinha que nunca publicou.
Começou o ano de 2020 a dedicar-se à fotografia, pois já frequentava exposições e tinha interesse em livros da área. “Mas nunca tinha investido na parte técnica, por isso, no ano passado, antes da pandemia, fiz um curso de fotografia”, conta a ‘O Regional’.
A psiquiatra chegou a estar alguns dias em teletrabalho, nos meses iniciais da pandemia, apesar de ter continuado a deslocar-se ao hospital na maior parte do tempo. Mas o confinamento geral — a impossibilidade de sair além do estritamente necessário — impediu-a de ir para a rua fotografar o que queria e, em conversa com a amiga Susana Rios, surgiu o interesse pelas aguarelas, que a fez recuperar o entusiasmo pela pintura. “Pegamos nisto como brincadeira e acabamos por começar a levar mais a sério”, explica. “Quando começou a pandemia, estávamos todos submersos neste flagelo que nos aconteceu e era difícil desligarmo-nos deste tema”, acrescenta.
Por sua vez, em março do ano passado, Susana Rios, de Espinho, estava a trabalhar como médica de família no Centro de Saúde de Cucujães, e a pintura era o seu objetivo de 2020.
“Foi um desafio para 2020 porque, de dois em dois anos, faço um desafio novo. Já foi dança, já foi o alemão... gosto sempre de aprender coisas novas”, conta a ‘O Regional’.
Apesar de, nas artes, sempre ter sido “mais virada para a dança” a pintura surgiu como algo que “ainda não estava desenvolvido” e pretendia aprender. Por isso, começou a ter aulas em janeiro do ano passado, que acabaram por ficar interrompidas em março.
“Fui desenvolvendo em casa, praticando cada vez mais e o confinamento das outras pessoas, que fizeram workshops, permitiu-me assistir ao fim-de-semana”, isto porque Susana Rios não esteve confinada, mas sim na linha da frente. Porém, esteve em isolamento profilático, nomeadamente depois de ter tido contacto com uma pessoa que contraiu o vírus numa fábrica em S. João da Madeira. Tendo, nesta circunstância, mais tempo para ocupar com a pintura.
Para a médica, a pintura foi uma forma de “ocupar o tempo e não pensar na pandemia”, funcionando como “um escape psicológico”.

As aguarelas como ponto de partida
“Por acaso tinha aguarelas em casa, que me tinham dado uma vez”, refere Ana Cristina Lopes. Por isso, começou a pintar aspetos relacionados com a situação da pandemia ou com o dia-a-dia, no qual as saídas foram reduzidas ao necessário — como uma ida à padaria — tentando “representar, de alguma forma, através da pintura e da imagem uma situação do real”.
A técnica não era dominada, mas não tardou que começassem a surgir workshops gratuitos online, como os da Olmar, que as médicas frequentaram, ficando “ainda mais entusiasmadas” e, a partir daí, houve um processo de experimentação.
“Comecei a fazer desenhos infantis, a treinar por exemplo a técnica das galáxias, como dizem, e gostei, apesar de não ter sido pensado”, aponta a psiquiatra.
Atualmente, como os workshops ficam disponíveis, Susana Rios vai “vendo conforme a disponibilidade”.
“No início do confinamento era tudo muito marcado, entretanto já é possível ficar gravado, por isso, nem há horários”, diz, realçando o trabalho que tem ao fim-de-semana “de ligar aos doentes covid”.
Quando as pinturas começaram a tornar-se uma realidade, Ana Cristina e Susana falavam, por telemóvel, sobre o que pintavam, que era sempre “um desafio”, apontado por ambas.
Depois, começaram a partilhar os primeiros trabalhos nas suas redes sociais. “Houve muita gente que me contactou a dizer que tinha gostado muito e a agradecer-me, porque, no meio de tanta informação e tantos estímulos que as redes sociais têm, penso que as pessoas ficaram agradadas ao ver algo que lhes trouxesse um lado mais fantasioso”, realça Ana Cristina Lopes.
A psiquiatra começou a receber pedidos, que aceitou, e foi pintando para oferecer, assinalando datas como aniversários. “Também ofereci a muitas crianças, no natal”, refere.
“Eu ia oferecendo, algumas pessoas fizeram pedidos específicos e tentei fazer”, indica, por seu turno, Susana Rios, explicando que pintou para decoração de escritórios, quartos de crianças, conforme indicações que ia recebendo.
Quando já tinha começado esta aventura de se dedicar de forma mais assídua, Ana Cristina Lopes cruzou-se com um artigo em que o pintor David Hockney sugeria que fossem colocadas de lado as câmaras fotográficas e que as pessoas começassem a desenhar, para “olhar as coisas e reparar nelas de forma mais lenta”.
“Com as câmaras fotográficas há uma grande quantidade de imagens e acontecimentos rápidos e não paramos tanto para observar”, explica a psiquiatra, admitindo que se identificou pois foi o que ela também tinha feito.
Ana Cristina já tinha tido contacto com pinturas a óleo, mas foi com as aguarelas que começou o seu desafio do confinamento.
Inicialmente, houve diálogo entre as amigas, mas, depois, conforme explica a psiquiatra, aperceberam-se de técnicas diferentes e cada uma seguiu o seu percurso, tendo voltado a existir uma “aproximação em termos de conteúdos, no natal”.
“Ao início tentamos fazer coisas semelhantes, mas, a certa altura, já não dava porque tínhamos estilos diferentes”, corrobora Susana Rios, considerando-se “muito abstrata”.
“Pintamos uma Frida Kahlo e saiu completamente diferente, nós não temos o mesmo estilo, apesar de termos nascido no mesmo dia”, sustenta a médica, em tom de brincadeira.
Ainda assim, trocar ideias e partilhar pinturas uma com a outra “ajudou bastante” e “é muito engraçado”, conforme diz a médica que, entretanto, deixou de trabalhar em Cucujães.
Atualmente a trabalhar no Porto, Susana Rios pintou também postais de natal, tendo “abrandado um bocadinho nas últimas semanas”. “Pintei muito para quartos de crianças, o que é engraçado e não foi tão abstrato”, salienta.
Susana Rios entende que não tem “capacidade criativa”, pelo que tem de ver quadros para se basear, ou seja, fazer uma “pesquisa visual”. Depois, desenho a lápis, faz um esboço, e, de seguida, pinta a aguarela. Se fizer “ursinhos ou elefantes para quartos de crianças”, por exemplo, planeia, tirando notas e fazendo o desenho.
“Normalmente, mesmo no abstrato, dou uma certa orientação do espaço que vou ocupar”, realça, sublinhado que nem sempre é possível prever o estudo de cores, pois “a aguarela tem o problema de não dar para o planear muito, assim como a textura, quantidade de água”.
O papel da arte na saúde mental
“Não posso dizer que sempre quis ser médica, tive muitas dúvidas, gostava muito de biologia e entrei em psiquiatria pela ideia de ser uma área de aproximação às pessoas”, conta Ana Cristina Lopes, explicando que acabou por “escolher a especialidade mais próxima das ciências sociais”. Se não fosse psiquiatra, podia ter sido arquiteta, mas achou que “não teria vocação” devido à “exigência do ponto de vista técnico” da área, pois gosta de “ter alguma liberdade”.
A sensibilidade para as artes foi uma constante na sua vida, o que lhe permite acreditar que “um desenho pode suscitar a palavra e um poema também pode sugerir uma imagem”. Neste sentido, compreende igualmente que “a sensibilidade é das caraterísticas mais importantes de uma médica, pois trata-se de uma profissão que exige uma empatia muito grande pelas pessoas”.
A psiquiatra explica melhor a relação das artes e da saúde mental, duas áreas que, conforme destaca, sempre estiveram muito ligadas.
“Há a ideia de que há muitos doentes psiquiátricos com capacidades artísticas acima da média, mas também existe a arte como terapia para doentes mentais e todas as pessoas que experimentam passar por trabalhos artísticos percebem que há uma ligação”, salienta.
Por outro lado, como indica Susana Rios, “há imensos médicos com relação com a arte, seja para escrita, performance e principalmente para a pintura”. A arte pode também assim funcionar como um “mecanismo de defesa”, no entender da médica. “Nós temos uma vida stressante e a nível de saúde mental, usei como escape, como terapia, como combate ao burnout”, explica a profissional de saúde.
Susana Rios também confessa que a pintura a “relaxou muito” em momentos de maior stresse. “Tínhamos uma sobrecarga com horários extra para dar resposta a todas as solicitações e a pintura era a minha pausa, quando estou a pintar não penso no trabalho”.
As artes, como a pintura, podem, de facto, tranquilizar as pessoas, conforme explica a psiquiatra Ana Cristina Lopes.
Quando uma pessoa está a pintar, “há uma mudança em termos de respiração”, portanto, “há maior controlo”. Isto “é inconsciente, mas, de facto, quando a pessoa está a pintar, está mais tranquila”. A pessoa pode não se aperceber disso, “mas ao ter de estar mais concentrada está mais calma”.
Como em casa “não dava tanto jeito fazer ballet ou dança contemporânea”, Susana Rios focou-se nas aguarelas para “criar mecanismos de não absorver tudo o que os doentes dizem”. Apontando que nem sempre é fácil abstrair-se dos problemas dos doentes, a médica admite que, por vezes, “para não ser uma pessoa infeliz houve a necessidade de arranjar uma escápula”.
A médica de família realça ainda que o processo de pintar se traduz num momento “muito introspetivo”.
“Muitas vezes por estarmos angustiados ou ansiosos, focamo-nos muito no futuro e a arte é o aqui e agora, é muito presente, traz-nos para este momento de vivência de uma forma natural e acho que isso é muito importante”, sustenta, por sua vez, a psiquiatra do Hospital de S. João da Madeira.
Ana Cristina Lopes também já usou a arte no decorrer do seu trabalho como psiquiatra, recorrendo, por exemplo, a fototerapia. “Há dois anos, no hospital de dia, com um grupo de seis utentes que tinham depressão, recorri a fotografias de um psiquiatra americano, tiradas especificamente para trabalhar com perturbações de humor e foi muito interessante”, partilha a profissional com ‘O Regional’.
Na prática, explica que tentou criar uma “catarse emocional” em que “a fotografia era um catalisador que permitia que as pessoas começassem a falar da foto e depois delas próprias”.
De resto, também já visitou o Centro de Arte Oliva (CAO), em S. João da Madeira, com os utentes, no âmbito do projeto “Normativos? Talvez... Não”. Trata-se de um programa, iniciado em 2016, que promove oficinas artísticas para doentes mentais e que parte de uma parceria entre o CAO e o Centro Hospitalar Entre Douro e Vouga.
A expectativa de continuar
Para Ana Cristina Lopes, o mais importante é que os seus trabalhos possam levar bem-estar e “devolver alguma liberdade” a quem os recebe. Mas também não esconde a vontade de continuar a pintar.
“Gostava de levar isto mais a sério. Pelo menos ter uma página pessoal e ter as coisas mais organizadas”. Este é o objetivo mais claro que tem, atualmente. Expor? “Também poderia ser uma possibilidade se ainda tivesse as pinturas comigo”, responde a rir.
“Acho que é algo demasiado grande para mim, gosto da ideia de poder dar a alguém e que essa pessoa fique contente com esse momento, isso interessa-me mais do que uma exposição”, completa.
Para Susana Rios, a pintura já “é como ir ao ginásio, não é para parar”. “Aliás, o material está sempre montado na mesa da sala, pinto em casa por hobbie”, justifica.
“Temos um esboço de página”, partilha ainda Susana Rios. “Mas a Cristina tem mais encomendas que eu... também não publicito tanto, não me posso queixar”, remata a rir.
O que começou como um desafio para desligar a mente dos problemas, parece estar a criar uma corrente de energias, servindo de inspiração para outras profissionais de saúde. De resto, confessa que já conseguiu “contagiar uma colega” no novo centro de saúde em que trabalha, no Porto, e começar a “fazer desafios a três”.